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A LIÇÃO DO MESTRE   Não tenho certeza de que os fatos que vou narrar são produto da imaginação, de um surto, um sonho ou mesmo se aconteceram do modo aqui descrito. O fato é que uma febre chatinha me atacou recentemente, afetando-me a saúde. Com ela também vieram umas vertigens que, além do mal-estar repentino, costumavam turvar a minha visão durante alguns minutos. Mas juro pela alma de Allan Kardec que nada do que lerão vai passar, no máximo, de um breve delírio. Era um fim de tarde calorento em São Luís. Eu vagava pelo centro histórico, nas férias, sem nada para fazer. Foi quando parei diante de uma portinha ladeada por colunas de madeira envelhecida. Na fachada pude ler: “Livraria O Alienista”. Morrendo de curiosidade, entrei. Lá dentro havia um gato angorá preguiçoso, deitado sobre uma pilha de livros, coçando os bigodes e com os olhos semicerrados. As estantes abrigavam nomes imortais que moravam ali: Sousândrade, Cecília Meireles, Susan Sontag, Josué Montello, Ferrei...
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                                            Turíbio Santos – Choros N° 1 – Villa Lobos      
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  O MÊS MAIS BONITO   Diz Aluísio Azevedo, em O Mulato, que junho é o mês mais bonito de São Luís. Concordo ao pensar no alvoroço dos arraiais, no som dos tambores que se ouve ao longe, reproduzindo-se como cantos de galos em gigantescos e longínquos quintais, anunciando as brincadeiras de bumba-meu-boi em toda a Ilha. Nesses dias, paira um frisson contagiante entre os jovens e entre os mais velhos que conservam na memória dos corpos os meneios das danças e as batidas dos pandeirões e das matracas. Ao chamado das toadas, reúnem forças esquecidas e mergulham o corpo e a alma nas brincadeiras. Mas a beleza de junho referida por Aluísio não é a da festa popular, e sim a do clima, diz ele: “Aparecem os primeiros ventos gerais, doidamente, que nem um bando solto de demônios travessos e brincalhões que vão em troça percorrer a cidade, assoviando a quem passa, atirando ao ar o chapéu dos transeuntes, virando-lhes do avesso os guarda-sóis abertos, levantando as saias das mulheres e mo...
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  TV RIBEIRO   Chamavam-no de TV, mas seu nome mesmo era Ribeiro. O apelido colocado na infância, tempo difícil em que a televisão era luxo. Em sua casa, o aparelho demorou a brilhar. Por isso, Ribeiro se acostumou a assistir os programas pelas janelas dos vizinhos, com os olhos curiosos e o queixo apoiado no parapeito da esperança. Era desses meninos que aprendiam o mundo do lado de fora. Na rua, virou costume: “lá vai o TV!”. Alguns zombavam, outros admiravam aquele garoto que decorava novelas, narrava futebol com emoção e sabia as falas dos comerciais. O mundo se abria pela tela dos outros, mas a imaginação era dele. E talvez por isso tenha crescido com um senso raro de observação. Sabia ler os gestos, ouvir o silêncio, perceber o que se escondia nas entrelinhas. Quando cresceu, o destino o levou ao Jornal Pequeno, onde trabalhou por décadas até se aposentar. Era ali, entre papel, máquina e silêncio de redação, que Ribeiro encontrou seu ofício. Não escrevia manchete...
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  MODIGLIANI E A PAIXÃO   Tenho a presunção vaidosa de propagar que o pintor Modigliani foi introduzido na fala de dois personagens, de contos, de minha autoria em momentos distintos (inconscientemente, ou seja, de forma não deliberada pelo autor). Também está presente na capa do livro O pequeno dicionário de paixões cruzadas, que considero muito bem realizada, de autoria de Natanael Castro. Sem respaldo técnico para dizer isso, ou seja, falando apenas como apreciador, vim a admirar o Impressionismo como a escola da arte da Pintura cujos representantes atingiram a quintessência e, entre eles, para o meu gosto pessoal, Amadeo Modigliani. Lá estão, nos retratos do pintor italiano, a extraordinária melancolia (favor não confundir com tristeza) em posturas onduladas, extraídas da arte japonesa, cujo clímax é realçado pelos olhos vazados de seus modelos nos quais é possível intuir todo o mistério da alma humana, tão difícil de ser descrita por qualquer formato de arte. Assi...
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                                                         Zeca Baleiro – Essas emoções      
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  O MENINO QUE SONHAVA   O escritor Gilmar Pereira Santos nos brinda novamente com mais uma de suas bem lavradas invenções literárias, a exemplo, de obras antecessoras, como "Nas terras de Bom-que-dói" (selecionado e publicado pelo Programa Cultura da Gente-BNB), "A Ilha Encantada" (Prêmio Bandeira Tribuzi - FUNC-São Luís) "Os Vagalumes coloridos na noite de Natal" (Antologia Literária do Nordeste-BNB), "Mistérios e Encantos da Fantástica Ilha Flutuante (Romance-documento, 1990) e "Amores Contrariados", dentre outros. Por que ler Gilmar? Parodiando Celso Gutfreind em sua apresentação de Jonathan Swift (autor de As viagens de Gulliver) na coleção "Guia de Leitura 100 autores que você precisa ler" organizada e editada por Lea Masina (L & PM Pocket, Porto Alegre, 2007), diríamos que há necessidade de ler com atenção redobrada "O Menino que sonhava" (com chamativas ilustrações de Hannah Garcês - onde se destaca com a ...
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  URBANA LEGIO OMNIA VINCIT   O tempo passa. E, às vezes, deixa trilhas. Em 1989, a Legião Urbana fez isso: lançou um disco que mais parecia uma conversa com o mundo e com o próprio abismo. As Quatro Estações não foi um simples álbum, foi um diário existencial. Nesta época agradava as meninas do Centro de Educação Tecnológica - CEFET, levando meu Long Play para a quadra, onde ouvíamos dezenas de vezes. A gente ouvia e sentia que Renato Russo escreveu com dor e esperança ao mesmo tempo. Esse disco é como um abraço apertado em quem nunca mais vimos. Músicas como essas nunca envelhecerão. O álbum começa com “Há tempos”, uma provocação filosófica. O som é denso, a letra é um quebra-cabeça entre livro, filme e vida. Dá aquele estranhamento de quem cresceu demais por dentro, como se a adolescência tivesse ficado para trás sem avisar. E a gente ouve e pensa: será que amadurecer é sempre tão dolorido? Talvez a música só tenha traduzido aquilo que muitos sentem, mas poucos têm c...