Imre Kertész
Diante das provas materiais apresentadas na sua
acusação, Antônio R. Martens nada negou, tampouco demonstrou arrependimento.
Relatou seus crimes com naturalidade de quem contasse um causo. Seu advogado
surpreendeu-se quando ele, apesar da pouca instrução, pediu-lhe para deixar
tudo relatado de forma redigida. E assim o fez.
Explicou, por escrito e com digressões filosóficas,
que, às vezes, é depois de "levados de roldão" que percebemos para
onde estamos indo. Ele não tinha ideia de quem perseguia, afinal. Alguém do
grupo que ele passou a fazer parte apenas disse-lhe que eram judeus. Mas ele
não via nisso um motivo.
Pouco se importando com explicações, apenas fazia
seu serviço, e logo apareceu a chance de uma promoção. Raciocinou que a nova
função devia ser elevada, pois disseram que este departamento requeria
filosofia e concepção de mundo, embora ele não possuísse uma coisa nem outra.
O departamento era um lugar lúgubre, onde sujeitos
de aparência sinistra recebiam ordens do que fazer. Um deles, o Rodrigues, o
chamava de "meu centro de comando", orgulhando-se da estatueta sobre
a sua mesa de trabalho. Era um bonequinho pendurado em uma espécie de balanço
que ele mandara fazer, chamava o enfeite "Balanço de Boger", que ele
embalava com o dedo e observava com a atenção que uma criança daria a um
brinquedo. O Rodrigues afirmava que não era afeito aos mecanismos modernos de
trabalho, preferindo o método tradicional...
Ao perceber a real finalidade do Departamento,
disse ao seu colega Díaz que pensava estarem a serviço da lei. "Do poder,
rapazinho!" Esclareceu-lhe Díaz.
O jovem Enrique Salinas pertencia a uma abastada
família, mas inquietava-se com a atmosfera sufocante do regime de exceção e a
indiferença dos que viviam como se nada tivesse acontecendo. "Bastaram esses
poucos meses para se acostumarem", pensava indignado. Sua mãe, Maria, se
preocupava com suas demoras em pleno toque de recolher, que proibia cidadãos
pelas ruas sob pena de risco de vida. Ouviam falar de desaparecidos e mortos.
Depois, passaram a saber de vítimas que não lhes eram estranhas. "Não
somos do tipo que eles levam", tranquilizava-a o marido Federico Salinas,
rico empresário, pai de Enrique.
Enrique procura unir-se a outros jovens para fazer
algo, mas não obtém bom êxito, em razão da sua inexperiência. Chega a pensar
que é por causa de sua conhecida origem burguesa. A bela namorada queria
namorar, e o jovem queria combater a tirania. A luta era a mais importante.
Incomodava-se em ser burguês, mas apenas para efeito de ser revolucionário.
Federico Salinas, sabendo que não tardaria ao filho
juntar-se a movimentos revolucionários, revela-lhe estar participando de um
grupo secreto de opositores ao regime, e então pede-lhe que se junte a eles.
Enrique começa a agir. Recebe e entrega regularmente uns envelopes lacrados que
lhes são entregues em locais indicados, ora em um restaurante, ora em um hotel,
por um sujeito de identidade desconhecida. Enquanto os Salinas subvertem a
ordem à sua maneira, o Departamento também se movimenta, sem saber exatamente o
que é ou não relevante. Tudo é devidamente registrado, inclusive os passos de
Enrique Salinas.
Primeiro, prenderam o homem a quem Enrique
entregava os envelopes. Depois, o próprio rapaz. Quando é sequestrado e levado
aos porões da ditadura, o jovem Salinas percebe que a realidade é bem mais
áspera do que a fantasia utópica que embala as palavras. Dias depois, o rico
senhor Salinas, o pai, vai à sua procura, e por lá também fica detido.
De nada adiantou ele dizer que inventara uma
estratégia para o filho pensar que estava participando de um grupo subversivo
e, assim, evitar que, cedo ou tarde, ele pertencesse a um de verdade; que era
tudo inócuo, os envelopes eram todos iguais e com códigos sem qualquer sentido.
E o homem que os levava e buscava era um funcionário de sua empresa, a quem
dera essa missão rocambolesca.
Os Salinas apenas sairão quando, para serem
julgados por um tribunal de exceção e fuzilados sem mais delongas.
Tiranias Admiradas
O convívio com a violência de Estado começou cedo
para o autor húngaro, influenciando na sua obra literária. Primeiro, viveu sob
o nazismo. Depois, sob o comunismo. Uma crônica de García Márquez, após uma
visita a Budapeste, revela bem esse ambiente. As pessoas tinham medo de falar
com estranhos, pois podiam ser informantes. Gabo também falou dos agentes da
polícia política disfarçados de sorridentes e solícitos anfitriões. E, ainda,
das irredentas pichações pelas ruas contra o ditador de plantão.
"Assassino do povo".
Para driblar a censura, Kertész ambientou o romance
em um país imaginário na América Latina, evitando assim retaliações. Mas era de
seu país que ele estava falando.
Curiosamente, em outro hemisfério, onde combatiam
suas próprias ditaduras, faziam proselitismo apaixonado dos regimes do leste
europeu.
Kertész, que
foi laureado com o Prêmio Nobel, deixou a lição de não haver isso de tirania má
e tirania maravilhosa, como a ingenuidade e o fanatismo podem fazer crer por
aí. E aos que servem as tiranias, o recado da história na meditação de um
personagem que servia à repressão ao assistir ao iminente fuzilamento que ocorria
no pátio: “A nossa profissão é arriscada. Veja você, está aqui em cima, na
janela, e amanhã, quem sabe, lá embaixo, amarrado à estaca”.
Alexandre Lago é advogado e escritor


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