10 poemas de Carvalho Junior
CIGANA
apressa o passo, cigana.
urgente preciso
um cigarro de Macondo
para pôr fim a esta
minha solidão
de quase trinta anos.
CLARÃO
a
fome – ave de rapina –
fita o que nos desalimenta,
cada farelo que nos consome:
os
ásperos grãos
de
pão,
de guerras,
de prêmios,
de dinheiro,
de poder...
caberia
tudo
num só clarão de espanto ou
num bater de asas sovinas?
a
fome, de modo inclemente,
mata com pílulas de culpa,
de exílios e silêncios cortantes!
um
sonho de capa de jornal:
em fase de inapetência e autoflagelo,
a
fome suicida-se,
com uma garfada,
no fundo da vasilha
em que jantava vazios.
O RIO E EU
uma folha
duma árvore qualquer
dançava na corrente de águas,
flutuávamos o rio e eu
um no silêncio do outro,
até o instante em que mergulhamos
num voo de segredos dos silvos
dum pássaro de nome não revelado.
O
NARIZ DA MINHA MÃE SANGRA...
enquanto o político derrocado
posa de moralista na estação de rádio,
o nariz da minha mãe sangra.
enquanto jogam peteca a cidade e o
caos
nas fendas da ladeira vermelha do sono,
o nariz da minha mãe sangra.
enquanto o trânsito segue áspero
e a delicadeza murcha
nas hortas e palavras (dos homens?),
o nariz da minha mãe sangra.
enquanto as filas não diminuem
no número de desrespeito
e o farmacêutico vende pílulas antiamor,
o nariz da minha mãe sangra.
como se falasse com Deus,
toda vez que me toma nos braços
e me embala com o curioso cântico
— tingadonga-donga-donga/
tingandanga-danga-danga —
o nariz da minha mãe
morre o sangue e vive o sonho.
NO ALTO DA LADEIRA DE PEDRA
cadeira, óculos, agulha...
no alto da ladeira de pedra,
vô Quirola remenda
as redes de pesca.
enganchos e tarrafas
do tempo, saudade é linha
que me abrange.
não me desprendo do pé
de amêndoa, campo-santo
dos meus ascendentes.
dormem aqui os peixes
nas cabaças, os pés
de puerícia, o balé
das petecas...
todos os meus cavalos
de palha.
GATO-DO-MATO
não se
domestica um poeta.
o poeta é um gato-do-mato
perseguindo a cauda
do vento selvagem.
ARARUTA
somos
feitos
das mesmas fomes
dos nossos pais,
das
mesmas lenhas
que os guardaram
do frio súbito das noites
caseadeiras de exílios.
de vez em
quando,
ouço de longe
a voz da lágrima
do meu pai
e de minha mãe.
um
quintal de ararutas
nasce dentro
do chão cansado
dos meus olhos.
PÍFARO
evita
o salto
suicida
de Safo,
não a
minha sombra morta
dentro do papiro-capemba,
na manhã
grave ferida
de faca e ferrugem,
a flauta
do índio
no meio do rio.
:
funda o pífaro de taboca
de um gamela
treze
aldeias de sopro
e milagre nos co(r)pos
de flores
que saram
os acessos
de flechas
nos meus calcanhares.
GRAFITE
para Teo Adorno
a utopia
escala o
morro
e salta
da asa
de um sabiá morto
sobre a
gravidade
redesenhada
por um
menino
lápis de luz.
O HOMEM-TIJUBINA
ho.mem:
s. m. 1. BIOL. Mamífero da ordem dos primatas,
do gênero Homo, da espécie Homo sapiens, de posição ereta e mãos preênseis, com atividade
cerebral inteligente, e programado para produzir linguagem articulada. [http://
michaelis.uol.com.br]
ti.ju.bi.na: s. f. || (Bras.) nome
vulgar de umapequena lagartixa.
|| (Ceará) (pop.) O mesmo que lambedeira. [http://www.
aulete.com.br/tijubina]; etimologia: tupi: teiu-ombý
[http:// michaelis.uol.com.br].
I.
o homem-tijubina tem um paladar
exigente. não digere
o ovo do óbvio. somente
silêncios de pássaros lhe passam pelos gorgomilos. quando o indagam a respeito
desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso. não tem idade,
apenas caminha. às vezes para frente quase sempre para o fundo do poço que
guarda as lágrimas dos seus ancestrais. é um composto de cortes de
unhas-de-gato e incoerências.
II.
o homem-tijubina vive, se dobra,
(des)dobra e recorta como um zine. camelô do calçadão
da afonso cunha,
pede esmolas como um poeta, é
este azulejo quebrado nas tuas mãos. usa
colar de hippie, pulseira de sementes antiquebranto, antiódio e antiamor ao mesmo passo e no mesmo cortar de pulso. é
poeira invisível nos escombros do cassino caxiense, fôlego e asfixia nos vivemorres do rio itapecuru. na
esperança de novos dilúvios, ele recita cecília:
a chuva é a música de um poema de verlaine.
III.
para o homem-tijubina a infância é como
uma ferida sem costura. diz que carrega suas corcundas hereditárias pela força
das ladeiras de pedras brancas em que um dia correu com os bolsos cheios de
pitombas, penas de passarinhos e sonhos acesos dentro de lampiões improvisados.
quando tomado de ira do mundo,
enfia o dedo no cu das não levezas
do cotidiano e brada contra a apatia dos fantasmas bípedes.
IV.
as pernas do homem-tijubina têm o
fracasso como farinha, como a massa de araruta que o alimenta no íntimo. − sem uma pedra na testa,
quem pode fazer um bom festejo? ri das
próprias perturbações com a dentada
suja e incompleta sem muito
se preocupar em entender os tipos híbridos que lhe compõem a natureza.
V.
o homem-tijubina descansa as dores no
silêncio da caieira quando opera o carvão guardador dos suspiros do babaçu que
desintegra os rancores no lábio do machado. como um índio, busca remédio nas
ervas naturais do seu chão e na fé
que se agarra como um ímã na moeda. balança a cabaça da paciência e se
benze/cura pelo rabo da mucura, pelos tutanos das lendas que o ninam com uma
voz de mãe.
VI.
rá.
o homem-tijubina é um bicho-papão. rá. o homem-tijubina parece a velha iaiá. rá. o
homem-tijubina não sabe assustar. sobrevive de soluços e atravessamentos
debaixo da ponte caída que dá acesso a lugar nenhum. um gole humilhado de
cachaça cuspida foi o que de melhor lhe aconteceu na última noite. para
quem tem quase nada para viver um pedaço sovinado de qualquer morte já é um favor.
VII.
o homem-tijubina não confia na polícia.
nos ladrões de meio de rua talvez
um pouco de vez em quando com os olhos
bem vivos. sobre aqueles moços(as) dos cartazes e santinhos diz que são
moscas varejeiras prestadoras de culto às grandes merdas que fabricam nos
gabinetes. tossir é tudo o que ainda
pode este velho metade humano, metade lagarto colorido de meninice. aquela
ternura escondida dentro do baú do arco-íris talvez até o melhore, mas a tosse do homem- tijubina de tão braba não cura nem com leite de uma jumenta dourada.
VIII.
o homem-tijubina é um poema desprezado,
por todas as almas viventes e vegetativas, resistente às chuvas e às ferrugens que lhe explodem
a pele. um dia ele nasce alguma coisa diferente e deverá outra vez
aprender a viver com a indiferença dos homens, dos répteis e de todas as (sub)
espécies por um ou vários deuses, darwins ou big-bangs inventados.
IX.
não
pense no fim, pelo amor da essência divina dos jenipapos, palmitos e sapucaias.
o homem-tijubina não morre nem com a faca treinada
da dona lourdes fateira que talha, sem perdão, até mesmo os peixes nas paredes que o
delírio humano-tijubínico sopra.
sobrevive ao tempo como
o grito de tiêta, como os desenhos
e estátuas de areia de andré
valente. enquanto mãe bida movimenta o quibano ao som dos capotes
e bodes &
outros cantores do sertão
artesanal das malícias e gameleiras, o homem-tijubina renasce, reconstrói-se e abraça as suas raízes
mais uma vez montado em um cavalo-de-palha.
X.
quando o homem-tijubina estende as
chagas sobre a música das folhas, preenche-se de fôlego para seguir com o cabresto aramado da sandália bailarina de
cipó, improvisando [à sombra das quatetês sibilinas] o escorpião de higuita. o
sol lhe doura a tatuagem leite castanha de caju com o nome de uma lepidóptera
mítica. um talo de coco numa mão, uma xícara de café de tucum na outra e cismas
incontáveis sob o cofo sarapintado da pele.
XI.
de peito lagartístico e calangnóstico, vagamundeia o homem- tijubina com uma reza inaudível no meio da roça. avança sobre as bitolas do chão regado de urucum e comemora a luz que lhe atinge de prazer o seio mais delicado dos abrigos de sua fauna interior. o chicote de um sorriso cintila e brinca com os dados de mallarmé nos aclives/declives do mundo novo da sua teia enrodilhada de pedras.
Carvalho Junior (Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, Caxias/MA, 1985). Professor, ativista cultural, gestor público e poeta brasileiro. Vencedor do Troféu Nauro Machado, categoria poema, no I Festival Maranhense de Conto e Poesia (Universidade Estadual do Maranhão, 2015). Publicou os livros de poemas Mulheres de Carvalho (Café & Lápis, São Luís, 2011), A Rua do Sol e da Lua (Scortecci, São Paulo, 2013), Dança dos dísticos (Editora Patuá, São Paulo, 2014), No alto da ladeira de pedra (Editora Patuá, São Paulo, 2017) e O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia (Editora Patuá, São Paulo, 2019). Organizou a antologia Babaçu Lâmina – 39 poemas (Editora Patuá, São Paulo, 2019), tendo organizado, também, anteriormente, em parcerias, a Antologia Poetas Locais Integrantes da Noite Universal (e-book, 2019, org. com Ricardo Leão) e a antologia/caderno de poemas Quibano: 15 poetas do Maranhão (Appaloosa Books, 2017, org. com Antonio Aílton). Membro da Academia Caxiense de Letras e da ASLEAMA, pesquisa vida e obra do poeta Déo Silva. Realiza, com algumas parcerias, o sarau/encontro de poesia Na Pele da Palavra e faz parte dos coletivos de autores Academia Fantaxma e Os Integrantes da Noite. Participou com o poema Abrigos da Exposição POESIA AGORA (Itaú Cultural, Rio de Janeiro, 2017). Foi o curador da Exposição Sementes de Poesia, em Caxias/MA, no espaço do Caxias Shopping Center (2018). Edita a página de poesia Quatetê. Integra o Conselho Editorial do Círculo Poético de Xique-Xique. Tem poemas publicados em jornais, antologias literárias e revistas do Brasil e do exterior. Possui poemas vertidos para o espanhol pelo poeta Antonio Torres.
Um grande livro, um livro diferente e intrigante.
ResponderExcluirPoeta de uma dicção distintíssima e cultura competente; corajoso nas construções e sempre inusitado. Dos melhores que tenho lido!!
ResponderExcluirNão apenas pela difusão que conquistou, mas por sua verdadeira qualidade e apropriação da persona do poeta, esse é um dos maiores que apareceram no Brasil nós últimos anos. Sua língua é sempre frescor e novidade.
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