Conversas vadias
A TARA E A TOGA*
ESTE LIVRO DE WALDEMIRO VIANA, ‘A tara e a toga’ é realmente um romance imaginativo que gira fundamentalmente em termos das relações humanas. Mas não é só isso, o livro é ainda, ao mesmo tempo, um romance histórico, a contar uma tragédia real, vivida por um velho magistrado, que no século XIX, em São Luís do Maranhão, sob o surto de uma violenta paixão senil e de um ciúme incontido, matou com resquícios de crueldade e volúpia, uma jovem moça dos arrabaldes da Ilha, por quem sentia satânicos desejos.
É
ainda o livro, uma história romanceada, em que Waldemiro Viana adverte o leitor
que o texto não se prende à verdade exata dos fatos, sugerindo cautela aos
“puristas da História em sua santa Ira”. E por que diz isso? Por que “em prosa
clara, viva e saborosa, arquitetada com magistral competência técnica”, ele
conduz a urdidura real e romanesca, a seu modo, levando-a por caminhos e
temperanças ficcionais, sem, no entanto, arredar-se do objeto maior, que é a
própria história, daí sua grandeza!
José
Cândido de Pontes de Visgueiro era um desembargador de alto respeito na Casa da
Súplica [antigo Tribunal de Justiça] e de elevado prestígio no Império.
Era
ele de índole má e tático maquiavélico, matreiro, e dizem, estupidamente feio,
de natureza casmurra e circunspecta, a tratar a todos com habituais e
mal-humorados monossílabos, quase inaudíveis.
O
velho magistrado era alagoano e vivia em um luxuoso sobrado à Rua de São João,
onde era servido e paparicado por seus empregados, e por mais doutos da
sociedade ludovicense que frequentavam seus umbrais em noites de banquetes e
que privavam de sua austera e incômoda companhia.
O
desembargador Pontes Visgueiro conheceu Maria da Conceição, alcunhada por
Mariquinha, uma moçoila do subúrbio de São Luís, e com ela, em troca de
presentes e mimos, conquistou sua atenção, a ter assim, o que outros tinham de
graça. O velho idolatrou-se pelo corpo da jovem, e a jovem enamorou-se pelas
algibeiras do velho... E assim começou como não poderia ser diferente, um
complicado ‘romance’ entre a doce Mariquinha e o azedo magistrado, que depois passou
a escandalizar a sociedade de São Luís com cenas patéticas, a ponto de o
desembargador ajoelhar-se para beijar os pés da adolescente, nas ruas
movimentadas da cidade.
Numa
bela tarde, daquelas que em São Luís são servidos ótimos crepúsculos, Pontes Visgueiro
a sentir incômodos calos a lhes nascerem nas têmporas, resolveu dar uma volta
de bonde lá pelas bandas do Largo dos Amores, o bastante para ver o que seus
amargurados olhos não queriam: Mariquinha a conversar alegremente com um jovem
Alferes da Polícia, o bastante para que Pontes Visgueiro premeditasse uma ação
diabólica. Numa noite, em seu sobrado, a forjar um banquete para a amada,
levou-a para seu quarto e dopou-a com a ajuda física de um seu escravo por nome
Guilhermino, matando-a de forma tão cruel que não deve ser descrita aqui,
enterrando-a depois de esquarteja-la no vão das escadas de entrada do
aristocrático solar, transladando-a, por precaução, para o quintal e
enterrando-a, por fim, em um canteiro florido por jasmins e rosas...
Corria
o ano de 1873, e como não há crime perfeito, logo o macabro homicídio foi
descoberto e Pontes de Visgueiro preso e levado para a Corte, perdeu o cargo de
desembargador e foi condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça a prisão
perpétua a ser cumprida na Casa de Correção do Rio de Janeiro. O infeliz
magistrado não resistiu, vindo a falecer dois anos depois, em 1875.
Os
despojos de Mariquinha, separados, cabeça, tronco e membros, foram postos em um
caixão de madeira, sobreposto a outro de zinco. O marceneiro Boaventura Andrade
ganhou a absolvição, porque foi provado que ele fizera o caixão atendendo uma
encomenda do desembargador; o funileiro Amâncio da Paixão Cearense, que
construiu o caixão de zinco, teve um agravante por ser compadre de Pontes
Visgueiro, e foi condenado juntamente com o escravo Guilhermino a oito anos de
serviços forçados.
Em
um novo julgamento, Amâncio provou sua inocência, porque, também como o
marceneiro, atendeu uma encomenda do velho juiz, apesar do compadrio com ele...
Depois desse episódio, juntou seus filhos menores dando adeus a São Luís em
rumo de Fortaleza... Lembra-nos Waldemiro Viana que, dentre essas crianças,
filhos de Amâncio, estava o belo poeta, teatrólogo, músico, compositor e
seresteiro, o imortal autor de ‘Luar do Sertão’ Catulo da Paixão Cearense, o
qual, depois de algum tempo, ao lado do pai e dos irmãos, na ‘Terra de
Iracema’, viajou para o Rio de Janeiro, e nunca mais voltou a São Luís, seu
chão natal, o qual fora palco dessa tragédia histórica que envolveu seu pai, e
quase, para sempre, pelos impulsos da senilidade de um magistrado
emocionalmente instável e de uma personalidade torpe e psicopata, nodoaria com
o sangue da injustiça os seus belos e
brejeiros cantos e contos de amor,
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*Fernando Braga, in ‘Conversas Vadias’ [Toda prosa] antologia de textos do autor.
Fernando, você é uma biblioteca viva da Literatura Maranhense.
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👍mario luna
ResponderExcluir👏👏👏👏👏😁
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