Mural

O VÉRTICE DO PÂNTANO

 

                                               J’ai tant revê de toi

                                               que tu perds ta realité

                                                     Robert Desnos

 

 

1

 

 

O pântano é um espelho despedaçado – nele flutuam imagens conduzindo ao além-mar das derrotas, dos dias de angústia mais negra. Eu me perderei pelos labirintos e pelas mansardas, em busca de uma lembrança cercada por antenas trêmulas e lampiões chineses. Abrem-se as corolas para mais um abraço mortal do destino, e a cidade estremece e recua diante da proximidade do Apocalipse, enquanto percorro as ruas de muralhas desabadas e canteiros desertos, as mansões que aprisionam tempestades de gaviões negros. A cidade e seus serpentários, sua coloração de sacrifício, suas vertigens, seus braços que não alcançam mais o próximo instante. Os telhados me sufocam e dão a certeza de que há gestos que são uma antecipação da morte e olhares que encerram abismos.

 

 

2

 

 

O rio e seus afluentes de tóxicos, seus igarapés de cocaína, sua tumultuosa visão de serpentes. Marte comanda a morte, caminhando sobre seus carrilhões surdos. Eu sempre me senti atraído pelo Oriente, todavia, e um magnetismo surdo dava a direção dos meus passos desprotegidos para a Vida e comandados pela Vertigem. Assim foi que se dissociaram as partes do meu corpo: as vísceras emaranhadas na copa de um coqueiro, as mãos despenhadas em crateras, os pés calcados em um formigueiro em planície árida, a cabeça congelada e fixa em uma encosta, os olhos vidrados para sempre fitando o poente, os genitais perdidos na correnteza de algum rio que nunca chegará ao oceano, os pulmões arrastados por falcões insensíveis, os demais membros perdidos em tetos de edifícios ou então fincados em troncos milenares.

 

 

3

 

 

A palavra Amor desaba pelas paredes do quarto, com um turbilhão de outras palavras: cratera, aventura e fonte, navio, acaso e fuga, serpente, hora e salamandra, astro, circuncisão e potência, batismo de chamas, lâmpada submersa e gavião metálico, sombra calcinada, ossos enferrujados e areias movediças, tocaia de insetos ardentes, febre de sensações líquidas e marfim cravado de flechas, espirais de concreto colorido, locomotivas embriagadas ao poente e associações de leopardos tristes, cânticos soprados pela estepe, cortinas rasgadas dançando ao meio-dia, mantos hipnotizados, obscuridade povoada de plantas aquáticas, ilha habitada por morcegos, floresta de arbustos congelados, tempestade de pombas atravessadas por agulhas, antemanhãs, libélulas… A conspiração dos silêncios entrecortados de soluços toma conta da madrugada e congela o pensamento ao redor de uma só imagem: sombra navegada pelo incesto, campo do meu desejo galopante. O peso da invocação é tamanho que meus vasos sanguíneos ficam irremediavelmente emaranhados. O cérebro, cortado em duas metades, fixa o olhar para além dos contornos. A invocação é tamanha que paredes se dobram e novos ferimentos surgem sobre os corpos. A sombra é mais real que os passos, todo rastro é uma sedução definitiva, há imagens que são convites ao delírio e outras que nos arrastam sobre mortalhas, salões abandonados e despenhadeiros de lâminas.

 

 

4

 

 

Todo rio é um convite ao sobressalto, à morte através de chamas e venenos terríveis. Todo rio é um convite ao amor entre raízes milenares e campos roxos sulcados por veios de cristal. Pianos antigos, estações ferroviárias, um telégrafo enferrujado: fragmentos que gotejam sobre o meu corpo parcialmente destruído pela madrugada, o coração lancetado por um lírio ardente, galgado por mãos sensíveis segurando punhais, e engastado em um paredão infinito, entre pupilas veladas, algemas de marfim, e estandartes gravados a fogo. Isso, durante anos, que se dissolviam carregados pela tempestade. Não temíamos, porém, a escuridão, nem os perigos da febre e do mármore, e as conspirações de silêncios lacrados. Fomos só nós dois, unidos como um véu flutuante, à espera de maiores presságios. Só nós dois, os corpos inertes e solenes, no meio dos espelhos mansos e das crateras que não perdoam. Assim lançamos nosso desafio, apenas os dois, e a conivência dos sabres e das medusas.

 


Claudio Willer é autor dos livros de poesia Anotações para um apocalipse (Massao Ohno Editor, 1964), Dias circulares (Massao Ohno Editor, 1976), Jardins da Provocação (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981), Estranhas Experiências (Lamparina, 2004) e A verdadeira história do século 20 (Córrego, 2016), também publicado em Portugal pela Apenas Livros – Cadernos Surrealistas Sempre, em 2015. Além de ensaísta, crítico e agitador cultural, realizou importantes traduções de obras como Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, Escritos de Antonin Artaud e Uivo, Kaddish e outros poemas de Allen Ginsberg. 

 

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