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MÍNIMA POÉTICA

 

 

I

Poesia como forma de dizer

o que de outras formas é omitido —

não de calar o que se vive e vê

e sente por vergonha do sentido.

Poesia como discurso completo,

ao mesmo tempo trama de fonemas,

artesanato de éter, e projeto

sobre a coisa que transborda o poema

(se bem que dele próprio projetada).

Palavra como lâmina só gume

que pelo que recorta é recortada,

cinzel de mármore, obra e tapume:

a fala — esquiva, oblíqua, angulosa —

do que resiste à retidão da prosa.

 

 

II

Escravo da sintaxe e do desejo,

não posso ambicionar o brilho raso

e a transparência vazia que vejo

nesses cristais gerados pelo acaso.

Palavra é coisa feita, construída

de uma matéria turva e densa, impura

como tudo que tem a ver com vida.

A pedra só é bela, embora dura,

se meu desejo em torno dela tece

uma carne de sentido, e acredita

que desse modo abranda e amolece

o que só por ser áspero me excita.

Nesse momento o cristal é completo,

e o poema — este, sim — concreto.

 

 

III

Volta-se o verso sobre si, mas não

por ser o verbo o avesso do real,

seu adversário ou sua negação,

mas porque a fome do dizer é tal

que só o sólido já não sacia;

por isso morde a própria cauda e goza,

ao mesmo tempo língua e iguaria,

e torna-se mais sábia e saborosa;

mas quando além da conta é prolongado,

o gozo são converte-se em ascese,

o verbo vira ovo eviscerado,

só casca, e o verso, mimo sem mimese,

forma subversa, insignificante,

se fecha em não — canto sem quem o cante.

 

 

IV

Dizer não tudo, que isso não se faz,

nem nada, o que seria impossível;

dizer apenas tudo que é demais

pra se calar e menos que indizível.

Dizer apenas o que não dizer

seria uma espécie de mentira:

falar, não por falar, mas pra viver,

falar (ou escrever) como quem respira.

Dizer apenas o que não repita

a textura do mundo esvaziado:

escrever, sim, mas escrever com tinta;

pintar, mas não como aquele que pinta

de branco o muro que já foi caiado;

escrever, sim, mas como quem grafita.

  

 

Paulo Henriques Britto é poeta, professor de tradução, de criação literária e de literatura na PUC-Rio. É responsável por mais de cem publicações, dentre as quais muitas obras de ficção, mas também de poesia. Uma de suas traduções mais recentes é Grandes esperanças, de Charles Dickens (2º lugar no prêmio Jabuti em 2013), publicada pela Companhia das Letras. Já traduziu Elizabeth Bishop, Wallace Stevens, D. H. Lawrence, Henry James, William Faulkner e Lord Byron, dentre os autores mais famosos. Publicou seis livros de poesia, pelos quais recebeu importantes prêmios literários: Liturgia da matéria (1982); Mínima lírica (1989); Trovar claro (1997, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Prêmio Alceu Amoroso Lima); Tarde (2007, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); e Formas do nada (2012, 8º Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Literatura, Melhor Livro). Como tradutor, recebeu em 1995 o Prêmio Paulo Rónai da Fundação da Biblioteca Nacional pela sua tradução da obra A mecânica das águas, de E. L. Doctorow. Publicou ainda o livro de contos Paraísos Artificiais, também pela Companhia das Letras, em 2004, além de numerosos artigos científicos. Sua obra A tradução literária recebeu, em 2013, o Prêmio Mário de Andrade de Ensaio Literário.

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