Mural

POEMA INSULANO*

 

 

Vejo agora vejo e não estou sonhando

que Dom João, o Rei 4º, e bem-andante,

não terá o encoberto de Dom Fernando

que tem ferro e ferrão sem ser infante.

Não é aqui definitivamente o Quinto Império

da prédica do Bandarra, sapateiro profeta e profano,

 

nem tampouco é aqui a Corte de Queluz

que submergiu nos encantos...

 

Porque a amplidão dos Lençóis

é maior que os campos de Alcácer-Quibir.

 

Não há mais na Ilha vinho para os vivos

e flores para os mortos,

e nem canoas para as travessias.

Somente o sol liberta-se de seu claustro

a cair vermelho por detrás da tarde,

ante meus olhos desarmados

e atracados no cais de minh'alma.

 

O promontório não cresce mais no verão

e apodrece num montão de pedras a beijar

entulhos e mirantes, e telhados verdes de chuvas.

 

Homens e paralelepípedos despencam

dos becos e vielas por cumeeiras sem escápulas,

territórios de artistas e pensadores

que secam as vísceras ao sol do meio-dia.

 

Todos são poetas até prova em contrário, e nada mais existe

escrito a carvão, ou a caco de telhas,

nos muros e nos planos das calçadas.

 

As janelas desconjuntaram-se e as rótulas vazias

ficaram nos peitoris sem olhos e cotovelos.

 

As bilhas secaram como os peitos das mães de África,

e os quintais despomatizaram-se,

mas as marrecas continuam em seus baixos vôos...

 

As portas e as janelas, sem mais postigos,

foram literalmente fechadas e presas para sempre...

E lá no fundo do corredor, por um aleijão na argamassa,

uma réstia de luz vinda do poste da praça,

ficou, antes de tudo ser, como realmente o foi, e para sempre...

 

Em antigas casas, de gestos portugueses,

plantaram-se às portas e às janelas,

não alecrins, e jarros com flores,

mas bugigangas do charco, e chinesices,

que nada dizem à memória dos ilustres mortos;

nas igrejas não têm mais missas

e réquiens cantados,

nem mais as homilias de Padre Mohana

nas manhãs de domingo,

e nem os cânticos do ‘Te Deum’,

e nem mais rezas à noite, e ladainhas...

 

Os velhos sobrados, depois de tombados,

de tantos desamores e maus-tratos,

começaram literalmente a cair,

por não poder esperar a briga dos herdeiros pelos inventários;

são esses mesmos sobrados, esburacados e enfeados,

cujos motivos lusônios foram todos furtados,

a trocarem os adereços de endereços,

além de serem invadidos por devassas trepadeiras,

que se acoitam pelas paredes e sacadas de ferro:

que belíssimos jardins de inverno!

 

Os palacetes da média burguesia,

com jardins, e terraços, e gradis bordados,

viraram espaços de defuntos, e dores,

e, ao invés dos rasos risos do passado,

vivem hoje dos choros das carpideiras,

e do tremeluzir dos círios acesos,

e do cheiro adocicado

de cravos e de coroas de flores.

 

A Ilha que um dia foi rebelde,

de alma pura e corpo sujo,

hoje mais se parece uma fotografia

esquecida numa mesa de redação,

como se fosse um grande abrigo

com pátio e poço a desmanchar-se em caliça,

onde vivem indigentes,

e mais os jubilados da sorte,

e vencidos e degenerados,

personagens de histórias de ficção

e de tratados de sociologia

que resolveram sair das páginas em que viviam,

para expulsar seus autores

e levá-los ao exílio e à morte,

e se aboletarem na podre carcaça da Ilha,

como almas calcinadas;

pobres personagens sem pessoas,

aos poucos defluem como resíduos

para os muitos portos, ao redor da Ilha,

para serem diluídos no sal

e expostos ao sol e ao céu!...

 

Não há mais pregões nas ruas,

nem cofos, e paus-de-carga,

nem mais comícios políticos

no velho Largo do Carmo,

e algaravias de estudantes...

 

Nunca mais aquelas brigas

panfletárias de morfologia e sintaxe,

e nem aqueles filólogos a discutirem

se o nome da Cidade,

provindo da variação latina de Ludovico,

seria mesmo com s, ou z.

 

Nunca mais bondes, vitrinas, saraus e retretas...

e pronomes bem-colocados,

e verbos conjugados certos,

no tempo da carne e no modo do vinho.

 

Mas sempre na Ilha há de existir

a crueza da língua viperina,

em punir com sentenças extramuros,

inocentes, principalmente,

com injúrias, calúnias, infâmias e difamações,

como se o abecedário predicado por Vieira

continuasse a explodir no tempo,

dando ênfase à letra M.

 

Diz o hino libertário que “... caiu do invasor a audácia

estranha, e surgiu do direito a luz dourada...”

 

E a Ilha ficou sem mais ser!

E a história se fez escrita,

e ficou na cidade, na cidade

que tem nome de santo, e de rei, e de menino.

 

E o passado se fez de rima na poesia encardida

nos azulejos, e na saudade de tudo quanto à vista alcança,

e na lembrança do que ainda se desdobra,

e na inteligência de crânios polidos

que rolam à-toa ao rés-do-chão.

 

Morreram todos, dizem os cadeados nas cancelas!

 

______

*Fernando Braga, in ‘Poemas do tempo comum’, São Luís, 2009.

‘Prêmio Literário Gonçalves Dias’, da Secretaria de Cultura do Estado.

Comentários

  1. Fantástico poema sobre nossa ultrajada ilha.Parabéns Poeta.

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  2. Poema másculo e poesia maiúscula a que o nosso Fernando nos presenteia desde os tempos de antanho. História lírica, brado irado, misturam-se nessa passagem do tempo pela memória onde tudo se perde, morre, mas também onde tudo se acha e revive quando se usa a palavra para recriar mitos, lendas, fatos, a própria vida, enfim.

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  3. Belo, pungente, doloroso e dolorido poema, em que Fernando Braga, com seu invulgar talento para convocar memórias e palavras, topos e tropos, vocábulos e fantasias, fantasmas e vivos, passeia entre as ruínas humanas e prediais dessa cidade encantada e maltratada, onde a poesia escorre dos sobrados velhos e das lembranças da vida que se esvaiu, ceifada pelo tempo. Um alto e forte momento da Poesia do Maranhão, Fernando Braga.

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  4. Fernando Braga é muito grande. Sabe domar as palavras.

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