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O CORONA E O REBANHO
IMUNIZAÇÃO DE REBANHO? Que coisa é essa? Qual rebanho? Bovinos, ovinos ou qualquer outro que seja? Não, trata-se de gente mesmo, população de humanos, considerada, de raso, na sua condição de animal. Essa denominação circula na época de mais uma pandemia que assola o bicho da Terra tão pequeno, a terrível COVID. Teoria, defendida por um grupo que preconiza o fim da pandemia por imunização natural.
Nessa linha, estima-se que, depois de infectados 60% do “rebanho” (o rebanho brasileiro tem 210 milhões de indivíduos), 126 milhões seria o provável número de infectados para atingir a tal imunidade. Nesse meio tempo os mais velhos, os que têm comorbidade relacionada à COVID, os fracos, integrarão a maioria dos mortos. A taxa de morbidade varia de país para país, de estado para estado. Os sobreviventes ficarão à espera da próxima praga. Seria, então, a velha lei da Seleção Natural de Darwin, a sobrevivência do mais apto?
Pandemias não são nenhuma novidade,
nos últimos trezentos anos as mais famosas repetem-se, curiosamente, de
cem em cem anos, a saber, 1720, peste negra; 1820, cólera; 1920,
influenza; 2020, COVID 19. E, de entremez, as epidemias de varíola, febre
amarela, sarampo, ebola e muitas outras.
Mas nada se compara à famosa peste
negra ou bubônica do século XIV, causada pelo bacilo Yersinia, oriundo da
China, e que chegou à Europa a bordo dos navios mercantes e teve sua porta de
entrada em Gênova e Veneza. Varreu um terço da população europeia de 1347
a 1351, cerca de 70 a 150 milhões de vítimas, um número fantástico
considerando-se a população mundial de então.
Em 1353, Giovane Boccaccio, escreve o
famoso Decamerão, obra do início do renascimento italiano, que marca a
ruptura com a moral medieval e inicia um realismo distanciado da mítica cristã
na literatura. Na novela famosa, dez jovens, sete mulheres e três homens,
fugindo da peste reinante na cidade de Florença, uma das mais ricas e
requintadas de então, refugiam-se em uma propriedade rural e lá, em completo
isolamento do mundo exterior, passam os dias a preparar e contar as cem
histórias de que consta o livro. As lives de então. A licenciosidade que
apimenta a obra não advém do comportamento dos jovens, aliás, corretíssimo, mas
das narrativas que apresentam. Narrativas famosas que inspiraram outros livros,
filmes e peças teatrais.
Por esta obra, sabemos que há exatos
873 anos já se praticava o isolamento social como medida para evitar o
contágio; pinturas da época também mostram pessoas com máscaras com bicos
de pássaros e roupas pesadas. No decálogo de medidas contra a Influenza, de
1820, atualíssimo, consta a lavagens de mãos, o isolamento social e a cobertura
do rosto com máscaras ou lenços. Ou seja, tudo como dantes no
Quartel de Abrantes. As duas correntes, a do solta pra imunizar e a do isola
pra preservar, continuam a se digladiar e nós, no meio, perplexos, sem saber se
saímos ou ficamos. Antibióticos de última geração, medicamentos milagrosos,
higiene de viagem espacial, diminuem, mas não cessam a mortandade.
Creio firmemente que a Terra é chata,
paciente, mas reimosa, e que de tempos em tempos sacode os incômodos carrapatos
que a poluem e, assim, faz a sua higiene. Depois de um tanto de limpeza de ar e
águas, volta a hibernar. Esperemos, pois, a mudança do humor de Geia.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCeres tem sempre boas sacadas para suas crônicas. Aprendo muito sempre.
ResponderExcluirReflexão muito boa, faz-nos compreender a situação numa perspectiva histórica, da coletividade e dos comportamentos com linguagem viva e simples. E também faz compreender-nos humanos, em meio à natureza, que nos ultrapassa.
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