Textual
SEU
ALBERTO, CIDADÃO-COVID
QUANDO TUDO ISSO COMEÇOU,
seu Alberto trabalhava num pequeno supermercado perto da casa dele: o
Supermercado Prato Cheio. O nome ficava pintado de vermelho, na fachada e na
parede lateral, com duas figuras no fim da frase, a de um prato enorme e a de
um garoto de boné e língua de fora, à guisa de salivar as iguarias que vinham
do comércio, “o melhor do bairro”, como berrava o proprietário, nos fins de
semana, num microfone ligado a uma caixa de som, na entrada.
Seu Alberto tinha trabalhado
15 anos como motorista do pai do dono do Prato Cheio e, desde que se aposentou,
foi convidado a ganhar uma graninha a mais empacotando as compras. Ficava ali,
no fim do caixa, arrumava, de forma muito sistemática, frios numa sacola,
carnes na outra, material de limpeza na outra, e assim por diante. E ainda
punha tudo num carrinho e levava até o veículo do freguês e da freguesa, deixando
arrumadinho no porta-malas e na garupa da moto.
Foi numa dessas arrumações que
ele, pela primeira vez, ouviu falar desse tal de Corona. Uma senhora que fazia
a compra do mês comentou com a moça do caixa: “Eu ouvi ontem na TV. Lá por São
Paulo já tá cheio de gente doente. Na Europa, então, nem se fala, o povo tá
morrendo nas ruas e eles tão deixando o cadáver nas calçadas porque não tem nem
condição de enterrar, minha filha”. A moça fez uma cara, sussurrou um “Te
esconjuro” e entregou a nota fiscal. Quando seu Alberto foi deixar as compras
no carro, perguntou: “E será que esse bicho chega aqui?”. E a dona: “Vai chegar
e é já já. Tu não sabe que tudo que é ruim se espalha como fofoca?”. Fez o
sinal da cruz e entrou no carro.
Dois dias depois, seu
Alberto também ouviu falar do vírus quando assistia ao jornal na TV local, na
hora do café: “Autoridades de saúde do município informam que, na tarde de
ontem, foi diagnosticado o primeiro paciente vítima do Coronavírus aqui em nossa
cidade. Ele é um senhor de 76 anos e está internado na UTI do Hospital
Municipal Santa Gertrudes. Mais informações com o repórter...”. Ficou
espantado, principalmente porque conhecia o tal senhor que estava internado.
Estranhou mesmo que ele não apareceu no começo do mês para fazer as compras,
ele nunca faltava. Comprava de mês no Prato Cheio por causa da promoção do
desconto para idosos. Enquanto lavava a louça do café, ouviu ainda o repórter
dizer que a prefeitura estava se preparando para “uma onda de doentes” nos
próximos meses.
Naquele dia, ao chegar ao
supermercado, era a notícia geral: todo mundo comentando do tal senhor que era
freguês e que estava internado, correndo risco de vida. Decidiram fazer um
momento de oração para ele, na hora do almoço, “vai quem quer e quem tem fé”,
disse a moça do caixa, aquela que passava, todos os meses, as compras do agora doente.
Pelos dias seguintes, seu
Alberto tratou de prestar mais atenção no noticiário, local e nacional. Viu que
tinha uma briga entre o presidente, os ministros e os governadores e alguns
prefeitos. Viu que, em alguns estados, apareciam notícias de que as UTIs já
estavam cheias. Viu uma cena que mostrava um monte de covas abertas, acha que
foi no Rio de Janeiro, o repórter filmando do helicóptero. Viu que o prefeito
deu uma entrevista falando que, se aumentasse mais ainda o número de doentes na
cidade, iria ter que “decretar o lockdown”, que ele entendeu como o fechamento
do comércio.
Ouviu, uns dias depois, o
dono do Prato Cheio dizer, no telefone, todo encrespado: “Aqui no meu comércio,
quem vier fechar minha porta vai levar é bala no meio do rabo!!”. E ficou
preocupado quando, numa sexta-feira, encontrou a moça do caixa, logo de manhã
cedo, usando máscara. Olhou para ela e fez uma cara de espanto, ao que ela
respondeu: “Tá sabendo não, seu Alberto? Agora é lei. Todo mundo vai ter que
usar máscara pra trabalhar. Trata logo de comprar a sua. A Suellen, que faz a
faxina aqui, tá vendendo por 10 reais. Tem de todo tipo, até de time...”. Ele
só disse “Tá bom” e passou a empacotar as compras de uma senhora, que também estava
de máscara e passava álcool nas mãos.
Seu Alberto, na
segunda-feira, acordou com um leve sufocamento e uma dorzinha de garganta. Como
morava sozinho e não era de muito papo no serviço, não comentou com ninguém.
Mas o dia todo, aquela moleza, o corpo doído e um cansaço, principalmente
depois que colocava as coisas dos clientes nos carros. Na terça, acordou pior e
com uma tosse seca. Na quarta, não conseguiu levantar e ligou pro patrão,
dizendo que estava com febre e que não tinha condições de ir pro emprego, mas
que, se melhorasse, iria na parte da tarde.
Não foi. Nem na quinta nem
na sexta apareceu por lá. O patrão se preocupou e mandou um empregado na casa
dele, ver o que estava acontecendo. O rapazinho voltou dizendo que os vizinhos
informaram que seu Alberto foi levado pela ambulância, na sexta no fim da
tarde. Sem conseguir respirar, ele abriu a porta e pediu socorro a uma pessoa
que passava. Chamaram o Samu e ele foi levado para a UPA e depois para o
Hospital Municipal. E que agora estava
em estado grave.
“Foi o Corona, gente! Foi o
Corona!!”, gritou a moça do caixa, no começo da tarde, na hora em que chegava
do almoço. Ela viu o nome e a imagem de seu Alberto, no Hospital Municipal,
deitado numa maca e depois sendo levado pelo carro do IML. Pânico geral. Todo
mundo com medo de ter sido contaminado. Naquela terça-feira, o dono do Prato
Cheio, também em pânico, teve que fechar mais cedo, porque não houve mais
condição de trabalho entre os oito empregados do estabelecimento. Nem os
fregueses quiseram entrar no supermercado porque se espalhou pelo bairro, como
um rastilho de pólvora, a notícia de que “o velhinho empacotador do supermercado
Prato Cheio tinha morrido de Coronavírus!!”
No desespero, ninguém se
lembrou de fazer uma oração pro morto. Nem viu que ele saiu no Jornal Nacional,
misturado a outras vítimas, transformado em um gráfico digital.
Marcos Fábio Belo Matos escreve ás terças-feiras para o Textual.
Excelente conto/crônica. Texto essencial para este momento e para os que virão.
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