Textual

PARAGEM HIBERNAL

 

 


A IMENSIDÃO DOS TEUS GRACEJOS desaba sobre meu corpo insustentável.

Tua aura azulada não demonstra sinais de cansaço. Parece aberta a qualquer fluído de luz, qualquer força que agregue símbolos vindos das lonjuras.

Admito que minhas falsas mortes nunca fizeram sentido, apenas causaram desgostos passageiros, criaram discursos ridículos, teatros patéticos, cirandas malucas.

Hoje não repito o que pensara, nem mesmo assombro os outros com hologramas paridos de máquinas hipnóticas, com seus fantasmas insofismáveis dentro. Ao contrário. Hoje tenho cosmos ínfimos trancafiados no subsolo de minhas botas e rotas de fuga por entre os fios dos teus cabelos.

Tenho a pele que vibra, tenho ganas, tenho chispas, flamas rubras, contudo, carrego comigo a face lívida de um abjeto inquisidor.

Quero teu perigo por inteiro. Assumo o sonho e o medo que, juntos, são pulso e falta. Desejo e penúria. Arpejos de música espúria.

Assumo que serias meu futuro, mesmo que fossemos abismos dentro do mais fundo abismo e tua límbica cognição fraturasse as colunas das minhas plúrimas incertezas. Afinal, nunca quis mesmo plantar sementes em teu pensamento. Mas se as trazes consigo, e elas vivem, é justo que subsistam.

Sim, és mulher! Por isso teu grito a toda força, e tu sempre com garras as prontas, útero faminto, carne em frêmito, olhos cheios de tudo. Tudo!

Vê! Miríades microscópicas, assimilações, crimes antigos e protodúvidas ensaiam balés mágicos sobre o telhado de cristal da tua cabeça.

Tuas sapatilhas já não servem. Já não podem transitar por entre os corredores cindidos do nada, onde antes guardávamos as sombras dos carcarás, alguns sonetos pastoris, gincanas abandonadas sem vencedores e filhos caboclos ungidos pelas luzes de objetos celestes que ninguém ousa identificar.

Mirar os dias em seus estertores é coisa um tanto louca. Afinal, como saber dos nossos desejos na pura falta?

A estrada pulsa deserta em sua imensa imagem fluorescente. Densas matas bloqueiam os passos dos meninos que correm as trilhas, eternamente perdidos nesse mundo esverdeado de amores insubmissos.

Os sons aumentam aos poucos. As doses aumentam aos poucos. As faces manifestam-se sem sinais, e aos poucos. As vozes distantes dissolvem-se nas ondas de rádio, aos poucos. Os ruídos penetram o juízo, aos poucos. Acordamos, aos poucos, numa paragem hibernal e, como animais cansados, buscamos a última presa abatida e a fonte de rio mais próxima, para saciar a sede e a fome infernais desses meses perdidos.

Não decido fartar-me de todo. Quero ainda um pouco da espera, a centelha de um hino lúbrico que me excite a pele. O tempo obliterado. Um vagar que varra os provérbios mumificados que a memória esmaeceu.

Uma rede de mundos alarga-se em meus sonhos. Ao mesmo tempo, um canto germinal explode em ouvidos boêmios, quase surdos, destravando as portas da percepção.

Quero viver só. Só com tuas pernas, teus infernos, tuas plumas, teu coração invisível, teus seios volumosos, tuas luas, teus pavores, com o aroma e o vazio de tua cona desejada. E que me dragues rapidamente para o fundo do teu nada.

Sou rústico e vasto agora. Somos duradouros nesta saga transitória.

Desliga a luz! Vem acender a madrugada. Queimar no denso magma das câmaras interiores. Vamos! Abandona de vez a veste translúcida que ao teu corpo se gruda. Vem para mim, plena, imortal e muda.

 

Rogério Rocha escreve às sextas-feiras para o Textual.


Comentários

  1. Forte, caríssimo poeta e filósofo Rogério Rocha. Louvor ao sublime.

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    1. Muito obrigado meu querido Ailton. Estamos sempre sedentos por essa busca do sublime. É o que nos move. Grande abraço. Grato pela força.

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  2. Um texto cheio de magia, de poesia. Muito bom.

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    1. Minha gratidão, caríssimo poeta. É o que buscamos também. O sublime. Fácil não é, mas por vezes roçamos a sua tez. Grande abraço.

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