Textual

CICATRIZES

 


Teodoro se olhava no espelho. Fechava os olhos e passava o dedo indicador esquerdo nos sulcos que ficaram das cicatrizes das duas cirurgias que lhe salvaram de um câncer sorrateiro, mas lhe deformaram a cara. Depois descia a mão, ainda de olhos fechados, e apertava o nariz. Conseguia apalpar uma coisa de textura esquisita, uma pele mais densa, um pouco porosa e ao mesmo tempo indolor. Era a pele da testa que o médico teve que colocar no lugar da que foi retirada com o tumor – um remendo. “É a solução mais adequada, no seu caso”, ouvira do médico. Que remédio?

Dois anos já da cirurgia e a adaptação que o médico disse que seria ótima foi apenas boa. Aquela coisa toda de perder parte do nariz mexeu com ele, ao ponto de mudar o seu comportamento. Antes fanfarrão, notívago, cheio de amigos, Teodoro voltou para casa um homem retraído, ia muito pouco a eventos sociais, e quando ia dava um jeito de sair, à francesa, assim que terminava a parte protocolar. Sair com os amigos para um chope, então, nem pensar.

Foi Bárbara a primeira a perceber a mudança. Quando ele retornou do hospital, ela foi visitá-lo e foi recebida friamente. Ele falava pouco, um mal-estar visível nas atitudes e no timbre da voz. Não ofereceu café, nem suco, nem nada. Ficou o tempo todo sentado no sofá, de lado com ela, com uma revista na cara, monossilábico. Quando ela disse “Eu já vou”, ele respondeu “Tá. Muito obrigado por você ter vindo, viu?”. Foi a maior frase que pronunciou em meia hora de visita.

Na primeira semana, não foi ao serviço. Conseguiu um atestado de febre e ficou em casa, recolhido, trancado, preso. Quando teve mesmo de encarar os colegas, botou uns óculos escuros no primeiro dia. Dava um sorrisinho de agradecido a todos que vinham à sua mesa parabenizar pela “Vitória” e dizer que estavam felizes com seu retorno. Não levantou da mesa para nada nos primeiros dias.

Em casa, mandou colocar um espelho enorme no quarto e uma luz bem forte em cima dele. Olhava-se quase neuroticamente. Toda hora estava na frente do espelho, com aquela luz-holofote, olhando as cicatrizes, apertando o nariz e conversando com aquela cara triste que o encarava. Chorou algumas vezes.

A única pessoa que Teodoro permitia olhá-lo sem reprimendas era Sansão, o gato de estimação. Sansão ficava muitos minutos da noite, quando ele chegava do trabalho, no seu colo, olhando fixamente para ele. Ele desconfiava de que o gato, no fundo, achava que ele era uma outra pessoa.

 “Um dia tudo isso vai passar”, escreveu Bárbara para ele num email, que lhe mandou no seu aniversário, com uma linda foto de uma santa que ele não sabia quem era. Ele leu com raiva aquilo, deletou e escreveu de volta: “Que lindo! Obrigado. Vou guardar para sempre essas palavras”. Ficou sem saber se ela tinha achado delicado ou irônico. Bárbara sumiu, enfim desistiu dele. Soube depois que casou com um namorado e foi embora para o Mato Grosso do Sul.

Sumiram todos. Com o tempo, Teodoro ficou muito recluso, isolado. Trabalho-Casa-Trabalho. Cinema nos fins de semana, o único vício que ficou dos tempos em que “tinha cara de gente”, como ele repetia às vezes para o Sansão.

Em março de 2010, surgiu a chance de Teodoro mudar de cidade. Uma redistribuição no seu emprego, uma vaga que abriu na capital. Ele, em segredo, entrou com a papelada. Mudou sem dizer nada a ninguém, os colegas só souberam porque saiu no Diário Oficial, mas ele não estava mais lá, aproveitou as férias para fazer a mudança. Na cidade nova, não teria amigos. Sansão não foi com ele, morreu atropelado em agosto. Além da mala e da mudança minúscula, Teodoro só carregava as cicatrizes. Essas ele não poderia, nunca, deixar.

 

Marcos Fábio Belo Matos escreve às terças-feiras para o Textual.

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