Textual

DE MEDOS E PLÁGIOS

 

 

Lília Schwarcz ( As barbas do imperador, Companhia das Letras) foi acusada de plágio na sua obra de literatura infantil O livro dos medo.  A denúncia, informal, foi  levantada por uma leitora,  referindo-se a um dos medos do livro, o medo de “jacaré debaixo da cama”. Segundo a leitora, a história plagiava quase integralmente outra de um livro infantil norte-americano. A autora entrou em contato com a editora americana e constatou a identidade das duas obras; foi informada que a editora estrangeira não tomaria nenhuma medida para embargar a publicação brasileira, certamente por considerar o fato de somenos. Lília revelou à imprensa que a narrativa foi inspirada no seu medo de menina – coincidentemente o mesmo da menina-personagem americana, ambas provavelmente habitantes de cidades bem distantes de jacarés e crocodilos. Preocupada com possíveis arranhões na sua reputação de escritora,  retirou a narrativa  do livro.

Medo de jacaré debaixo da cama, confesso que nunca tive e sim de cobra que deve ser uma de suas variantes. Pelo que sei, muitas crianças receiam a mão misteriosa que, subitamente, pode agarrar seu tornozelo ao sentarem-se na cama. Outro medo comum é o de ficar com o pé preso no trilho  e de repente o trem surgir na curva  – mesmo sem nunca  termos atravessado uma linha do trem. E o medo de vampiro, que nos fazia dormir com um dente de alho pendurado no pescoço?  Agora, fiquei preocupada de ter plagiado os medos do livro da Lília. Que ainda não li.

Que auferimos disto? Novidades mais velhas que a Sé de Braga: que os medos, principalmente os infantis, não têm nacionalidade e que os grandes motes da literatura universal  são sempre os mesmos, mil vezes repetidos - o que varia é o modo de contá-los.

Marina Warner historiadora inglesa, no livro Da fera à loura, investiga as origens dos contos de fada populares e descobre que a versão mais antiga de Cinderela, em sua  estrutura essencial, foi registrada na China, em 850- 60 d.C., há mais de mil anos. E diz  que a história já devia ser do conhecimento popular. Esse conto de fadas circulava no fabulário europeu quando foi  colhido   e recontado na sua forma atual, em 1697,  por Charles Perrault. E não parou aí. Continuou se reproduzindo em inúmeras versões, porque a  história da moça pobre, bondosa e bonita que,  por meio do amor, vira rica  e poderosa   sempre fascinou o imaginário coletivo dos povos de todas as épocas.

Esse desdobramento não ocorre só com a história de Cinderela. Os milhares de fábulas que circulam no mundo derivam de umas poucas estruturas básicas, nos revela Vladimir Propp no seu estudo sobre a morfologia dos contos de fadas. O que muda é o recheio, acrescentado conforme o país e a época.

Fui menina no tempo em que a televisão ainda  não havia chegado ao Maranhão, me sobrava tempo para brincar e dar largas à imaginação.  Adorava histórias e, acabado o estoque de livros e revistinhas, rapidamente devorados, atormentava cozinheiras e copeiras para que me contassem mais uma. Elas diziam: “Quem conta histórias de dia  cria rabo”... Eu insistia e lá vinha mais uma do coelho enganando  a onça, do menino desobediente que virava currupira  ou da moça prometida ao príncipe que, lavando as mãos à beira do rio, perde o anel dado por ele – logo engolido por um peixe. Perdida a jóia, o príncipe esquece a moça e só volta a reconhecê-la quando, pescado o peixe, o anel  é recuperado.

Anos depois, no estudo da literatura universal, encontrei no Roman de Renard, fabulário  da Idade Média francesa,  a raposa enganando o lobo no  embate esperteza X força - as tais histórias de coelho ouvidas na cozinha  da minha casa, narradas por domésticas criativas mas quase sempre analfabetas. O fetiche da jóia perdida e do príncipe esquecido já tem registro na obra-prima da literatura universal Shakuntalá, do indiano Kalidasa, no século I d.C. Aliás, a perda de um objeto que promove o afastamento dos amantes é recorrente em muitas narrativas do gênero e está presente também em Pele de Asno, de Perrault (só que ali, a peripécia do reconhecimento  dá-se com a volta do anel  dentro de um bolo).  Fazendo uma análise à moda de Freud, a jóia perdida pela heroína pode muito bem ser a virgindade, e o esquecimento do  herói é aquele "esquecimento" que costuma dar nos homens após a consumação amorosa.

Os tipos ingênuos que enganam a todos, à moda Pedro Malazartes, deliciam o leitor nos Fabliaux da Europa medieval e também no fabulário do interior maranhense.  E aí cabe a discussão do que modificamos da fonte européia, bebido via cultura ibérica, e do que foi criado por nós, a partir dos estereótipos literários/culturais universais. Sem essa última  percepção, como enquadraríamos a esperteza  do jabuti das fábulas indígenas ou a  narrativa dos Guaranis sobre o dilúvio?

A propósito, já cotejaram a epopeia Gilgamés, da literatura dos sumérios, com a narrativa bíblica do dilúvio? Igual. É, difícil, também, definir-se  plágio no neoclassicismo, se tivermos em mente que a escola incentivava a imitação dos modelos clássicos: vide a Eneida, de Virgílio e Os  Lusíadas, de Camões,  as epopeias brasileiras de Basílio da Gama e Sta. Rita Durão. Modernamente, temos a genial A Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, e as múltiplas influências de Virgílio, Camões e Dante.   As adaptações de Medeia, de Eurípedes, e Gota d’Água, de Chico Buarque; a Ópera do malandro, do mesmo Chico, que se inspira na Ópera dos 3 vinténs, de Bertolt Brecht, que, por sua vez,  se inspira na Ópera dos mendigos, de John Gay, e assim la nave va. O exemplo dessas grandes obras, de múltipla inspiração, só corrobora a característica circular do texto universal e a impossibilidade do escritor fugir da angústia da influência do intertexto.  Mas se os temas giram e são recorrentes, infinitas são as variações do texto, lugar onde habita a diferenciação e o talento pessoal.

 

Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.

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