Textual
O DELICIOSO
SÃO JOÃO INCORRETO
Ah,
poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre
inconsciência,/ E a consciência disso!...
É
cada vez mais difícil ser feliz. Coisas antes inocentes, tais como empinar
papagaio, tocar fogos de artifício, soltar balões, acender fogueiras nas ruas,
transmudam-se em crimes hediondos. Linhas de papagaios provocam apagões, morte
por eletrocussão e até por seccionamento de carótidas de motoqueiros! Belos e “inocentes”
fogos, brincadeira de crianças de antanho, são responsáveis pela mutilação de
milhares de pessoas! Os balões, vilões maiores, artefatos do demo, incendeiam
refinarias e plantações.
A
tristeza de ser consciente volta meu olhar para horizontes interiores buscando
uma época e um lugar: a infância e os festejos de São João do Largo de Santiago.
Criança, pude curtir nesse mundinho a alegre inconsciência de ser feliz nas
festas juninas. A expectativa emocionada do por vir era parte da semana que
antecedia a festa: os fogos que meu pai comprava - estrelinhas, chuveiros,
vulcões coloridos – guardados para o grande dia, eram conferidos no armário,
momento a momento, a ver se realmente lá estavam; o vestido caipira - lindo! -,
criação de Maria Costa, era mais que um vestido, semelhava um ser vivo,
acariciado dentro do guarda-roupa ou abraçado diante do espelho. E o
incomparável frio na barriga ao acompanhar a colocação das bandeirinhas
coloridas na rua, liderada pelos dois quitandeiros que demarcavam nosso
território, um em cada extremidade do Largo: Zezé Caveira e Seu Guilherme. Na
casa de Seu Barbosa, a mágica oficina dos balões, acompanhava-se todas as
etapas da construção, cada ano mais sofisticados e com um número maior de
lanternas.
No
grande dia, o auê dos preparativos finais. Em todas as casas do Largo, as
famílias providenciavam mingau-de-milho, manuê, cocadas, canjica. A
contribuição infantil era a busca de paus para as fogueiras. Percorríamos todas
as áreas vizinhas, até o proibido manguezal, atrás da Fábrica de Gelo, da
antiga Fábrica Martins.
Tudo
pronto. É hora de vestir a roupa de xadrez, pintar a boca de batom (ô, felicidade)
e, no pequeno jardim, subir na mureta para soltar os ansiados fogos. É dando-se
as mãos que se pula a fogueira e a escolha dos pares desperta ciúmes. Comadres
e compadres, jurados ali ao pé da fogueira, são para toda a vida. As simpatias de amor aceleram o baticum do
coração: uma faca virgem enterrada na bananeira do quintal escreverá o nome do
futuro marido, à meia-noite. Diabo é quem tem coragem de ir ao fundo do quintal
à meia-noite. Além do que nem bananeiras há na vizinhança. Simpatia mais fácil é escrever o nome do
amado em pedacinho de papel e pendurar numa das lanternas do balão - Seu
Barbosa deixa - e o recado vai direto para São João. Ai, meu Deus, não deixes
cair o balão. É a Hora!. Atravessar a rua até a concentração do lançamento
exige destreza: é preciso ir driblando os busca-pés. Há uma trégua para a
subida do balão. Supremo êxtase! É em forma de dirigível! Um Zeppelin!
Pendurada, vai uma cruz de lanternas levando os recados. O balão sobe até virar
uma estrela. Depois desaparece. São João na certa o recolheu.
Olho
os anúncios coloridos dos jornais. Dança de bois, cacuriá, tambor-de-crioula,
barracas de comidas celestiais, e decido: vou aproveitar a festa antes que
declarem que a morte do boi é politicamente incorreta.
Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.
Largo de Santiago e a "quitanda" de seu João Elesbão, além da de Zezé Caveira aonde nunca faltava papagaio. E foi um tempo em que nas apresentações tinha o "Auto do Boi" que hoje poucos sabem o que é. Bons tempos nobre imortal.
ResponderExcluirComo sou de algum interior além, ainda tinha macaxeira assada na fogueira, leilão, quadrilha e forró pé-de-serra, nossos olhos brilhando para um céu estrelado. Um outro mundo, no fundo da memória. Simples, tocante e evocativo como sempre, Ceres!
ResponderExcluirQue maravilha.Na verdade uma história que é de todos nós. Excelente .lindo e doce mergulho na infância de cada um.Mario Luna Filho.
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