Textual
SEMÂNTICA DAS AVES: O TEMPO NA MODERNIDADE LÍQUIDA
“vida: estrada férrea
entre a pétala e o
curtume;
rasura na palma do
improvável”
(Nathan Sousa)
Li
com muita atenção o livro Semântica das Aves do Nathan Sousa. Ganhador do
Prêmio Internacional Vicente de Carvalho (2017) da União Brasileira de
Escritores – UBE/RJ e lançado pela Editora Penalux, no mesmo ano. Tem cento e
seis páginas. Muito bem estruturado em quatro seções: stonehenge, labirinto de
brumas, o mercado de peles e plumagem.
O
tempo, a contemplação dos dias, a transcendência, o improvável está na mesa do
escritório do poeta. Ele observa as horas dos homens. Como gastam a vida: com
álcool, acumulando o vil metal, prostitutas, escrevendo as angústias. No poema
BASTIDORES, já entendemos o tom interno e reflexivo. O mundo é visto com
perplexidade, por isso: “é preciso plantar/ um girassol sobre a tevê”.
Confessou
para a revista Geleia Total, em entrevista: “escrever representa, para mim, um
mergulho na parte obscura de meu eu, e isso me aproxima do mundo.” Nathan
invade a anima sem pudor. Atravessa a
si mesmo ao lavrar o sonho, reconhece os impulsos da ave, no silêncio das
manhãs.
Vejamos
dentro da obra, as marcas de temporalidade contemporânea na cena de NOITE
LÍQUIDA:
vejo-te como uma vasta galeria.
e insigne é esta mão que escondo
em câmara ardente; afeita ao que é
espectro ou dígito de óbitos.
é este molusco dramático que ampara
o que o tempo decompõe feito o sal do solo.
e perfeita é a sombra de tua obra: distraída
e ávida como um café noturno.
O
polonês Zygmunt Bauman constata: “vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”.
Nada mais se solidifica entre nós, em nós. O poeta elabora uma imagem que casa
bem com a teoria do sociólogo: “é este molusco dramático que ampara/ o que o
tempo decompõe feito o sal do solo”.
A
rapidez do gás nas palavras. A carne não precisa de economia. As mudanças
contamináveis, na existência do moinho.
A célula se diluindo numa velocidade arrasadora.
Há uma preocupação leve do sujeito lírico, na busca por fixar os olhos na
construção literária, no entanto, isto não o tira desta devastação de sentidos
da Modernidade Líquida: “e perfeita é a sombra de tua obra: distraída/ e ávida
como um café noturno”.
Vejamos
o que encontramos mais à frente, no poema UTENSÍLIO:
seja forte. o mundo vai
te dar em dobro ou em triplo
o suor que você derramou
em todos esses anos de luta
para ter o que nas mãos também
é líquido.
Bauman
quase que profetiza: “estamos constantemente correndo atrás. O que ninguém sabe
é correndo atrás de quê”. A pressa foi implantada no nosso DNA. O sentido do
mundo moderno é a velocidade, o consumo, a compra.
Nathan
Sousa não é um homem oceânico. Não aceita o vazio deste tempo de agora. Pisa
firme. Encontra a questão filosófica na sentença afirmativa: “para ter o que
nas mãos também/ é líquido”.
É
o devir grego, morando na enunciação poética deste autor que é uma das grandes
referencias da literatura piauiense.
As
questões universais são colecionadas pela poética de Nathan. Muitas vezes
irônico e debochado enfrenta a realidade como podemos perceber na continuidade
do texto:
extraia da raiz dos nervos as
unhas submersas no perdido,
e talha tua própria fibra de
dentro para fora, cerzida na
vertigem desta dúvida que
agora te devoras pelas vísceras.
força, vamos! levante a cabeça
e olhe para o sol; não é lá
que reside este deus que
perfura a coerência de tua
fábula de consciência e medo.
este deus assanha seu arrojo
entre o ventre e a língua,
entre a saliva e a sevícia.
“O
medo é uma das marcas do nosso tempo”, disse Buaman. Tudo é feito em função
dele, ou não? Construímos cercas elétricas; destruímos a intimidade para
proteger “o ansioso”. Absurdo! Nossas fábulas são retalhos de medo: “que reside
este deus que/ perfura a coerência de tua/ fábula de consciência e medo”.
É
importante localizarmos as características sociológicas na coletânea, porque
ligam a luz discursiva do poeta. Ele está conectado com a estrutura social dos
nossos dias. Vê e denuncia, com uma linguagem densa: “acredite, nada disso foi
criado/ em sete dias./ apenas aquele aperto no peito/ de quem viu a primeira
lua”.
Nathan,
dessa maneira, conduz o leitor ao campo temporal instável da Modernidade
Líquida. Os textos superam a expectativa hermenêutica de todos nós, pois são
feitos com a força do sol de Platão, na alegoria da caverna.
Paulo Rodrigues escreve aos domingos para o Textual.
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