Textual

NÃO AO FEMINICÍDIO

 
















Praticamente todos os dias abro o jornal e me deparo com notícias sobre feminicídio (prefiro a forma femicídio, mas isso é outra história). Cenas absurdas já estão sendo tomadas como normais e devem ser combatidas. Os assassinos quase sempre ficam impunes e ainda há quem coloque a culpa de tudo na vítima. O conto a seguir choca pela carga brutal de violência, mas pode também servir como reflexão sobre esse mal que precisa ser combatido

Sem dúvida, ainda vai haver alguém que considere a mulher da história como culpada pelo próprio desfecho. Mas, ao meu ver, o culpado será sempre o ser irracional que age mais por instinto do que pelo senso ético e moral.

Leia o conto e tire suas próprias conclusões.

 

ANTES DO PÔR DO SOL

 

À memória de Rubem Fonseca, o escritor

que transformou violência em arte

 

Era pouco. Eu tinha apenas duas balas no tambor do revólver. Era pouco. Antes do pôr do sol deveria haver três cadáveres naquele chalezinho insípido que cheirava a produto de limpeza barato.

Quando meti o pé na porta e entrei, aquele canalha ainda exibia uma invejável ereção, e ela só teve tempo de cobrir os seios com os braços, deixando à mostra o sexo que tantas vezes me pertencera e que ainda ontem à noite havia sido meu, entre gritos e gemidos alucinantes.

Tudo mentira. Tudo mentira.

Assim como mentira também tinha sido o brinde que ele fizera para mim hoje pela manhã, quando nos encontramos em um posto de gasolina e nos dirigimos, entre risos, ao barzinho anexo. Deixe que eu pago, disse ele metendo a mão no bolso, de onde deixou cair um pacote de camisinhas que havia acabado de comprar na loja de conveniências. Caímos na gargalhada. Você é muito safado. Quem é a piranha? Ele riu sem graça e apenas respondeu: Coisa boa, coisa muito boa.

E ele tinha razão. Ela realmente era magnífica. Linda da cabeça aos pés. Mas agora sei que nada vale.

Confesso que nem imagino quem tenha enviado aquela mensagem para meu celular. Tua mulher está te traindo com alguém muito próximo a ti. Abre o olho. Hoje vai ter festinha... rsrsrs. Pensei que fosse molecagem da galera. Não levei a sério. Contudo, outras mensagens vieram. Sempre no mesmo tom de deboche. E desta vez, logo depois do almoço, chegou acompanhada de um endereço. O endereço de alguns chalés na saída da cidade. Local discreto e comumente alugado por quem deseja privacidade.

O dono do empreendimento deve ser um cara muito inteligente. Nenhum dos chalés tem ligação com os demais, de forma que se torna muito difícil dois ou mais carros se encontrarem ao entrarem ou saírem dos encontros clandestinos. Toda a transação financeira é feita via transferência e nada de comprovantes enviados para celulares ou e-mails. A confiança era a base do sucesso.

Resolvi conferi a veracidade da denúncia anônima. Até o número do chalé era citado na última mensagem, que vinha acompanhada da imagem de um touro. Aquilo me fez muito mal.

Desde que me casei om ela, nunca nem pensei em traí-la. Sempre fui fiel. E agora estava ali naquela situação embaraçosa. Ela havia puxado o lençol da cama para cobrir sua nudez. Nele não se via mais nem sinal de excitação. O medo estava estampado no olhar de ambos.

Desgraçadamente, sempre esqueço de carregar o revólver que tenho no carro. Gastei quatro balas com brincadeira de acertar latas e não as repus. O ideal era matar os dois e depois cometer o suicídio. Já puxei cana. E sei que a vida na cadeia não é fácil. Minha mãe, aos 73 anos, não resistiria ao saber do que ocorreria ali. Mas não dava para recuar. Só o sangue me livraria daquela vergonha!

O diabo é que só havia duas balas. Uma para cada um. Eu teria que fugir para sempre. Apontei o revólver para ele. As lágrimas rolaram de seus olhos verdes. Oh, mano, perdoa. Foi fraqueza nossa. Não precisa matar a gente por isso. Lentamente apontei a arma para ela. Seus olhos me fuzilaram com a ira de quem se acha com razão. Atira, corno desgraçado. Pelo menos vou morrer sabendo o que é sentir prazer de verdade. Atira!

Não tive dúvida. Atirei no peito dela, senti o sangue espirrar nos lençóis. Ele correu para socorrê-la. Parado aí. Ele estancou. Nada de ajudar. Quero ver essa cadela sangrar até morrer. Ainda tenho uma bala.

Ele se curvou e começou a chorar convulsivamente. Mano, não me mate, foi fraqueza mesmo. Do outro lado. Ela estrebuchava, tentando buscar ar para os últimos segundos de vida. Pedi que ele se vestisse rapidamente e ficasse de costas para mim. O tiro certeiro bem na cabeça acabou com a agonia dela.

Eu tinha um álibi. Ele também teria um. Restava-nos voltar para a cidade antes do pôr do sol e torcer para que nenhuma denúncia anônima chegasse aos ouvidos dos investigadores.

 Aos 73 anos, minha mãe não aguentaria perder dois filhos no mesmo dia.

 

José Neres escreve às segundas-feiras para o Textual.

Comentários

  1. Final inesperado. Muito bom. A culpa está na maldade e no caráter de cada um.

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  2. Mostra o machismo que carregamos, não aceitamos a traição.

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  3. Gostei muito do conto, a linguagem, o tom, o detalhamento realista, o desenvolvimento das situações... Até o final surpreendente, curto e grosso. Muito bom, RF e o nosso Ubiratan Teixeira iriam gostar.

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  4. Nervoso, ágil, com precisão de um atirador do velho oeste, assim o Neres maneja suas palavras e seus conceitos literários num conto que tem um desfecho inesperado, causando o impacto que todo bom conto deve ter.

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