Textual
A MOÇA
DO PIANO
Não sei se disse, mas sou
representante de um produto japonês de massagem. Viajo o país inteiro
apresentando ele em todo tipo de local: feiras, farmácias, reuniões
beneficentes, vou até de casa em casa, quando a cidade é muito pequena. É um
massageador que as pessoas usam nas costas, nos pés, nos braços, onde tiver uma
dorzinha ele chega e resolve. É isso que o panfleto diz. O panfleto traz a foto
do japonês que inventou o aparelho, um baixinho atarracado e com metade da
cabeça já careca, vestido de quimono. Quem
compra o aparelho ganha dois potes de gel. O gel é que evita que a ponta do
aparelho, que é uma bolinha que fica tremendo na pele, machuque as pessoas. Mas
já me disseram que o sucesso do aparelhinho do japonês é mesmo porque ele é
usado como vibrador. Não quero nem saber, é ele que me faz viajar, conhecer
muitos lugares e me fez comprar minha casa, meu carro e criar meus filhos até
agora.
Adoro viajar. Fico às vezes
duas, três semanas fora de casa. Gosto do cheiro de amaciante das camas de
hotel, com lençóis limpinhos, dos cafés da manhã, sempre cheios de coisas, dos
sorrisos das recepcionistas e da curiosidade delas pra saber o que é que existe
naquela mala enorme que eu carrego pra cima e pra baixo. Vou quase sempre de
avião, porque a firma do japonês arca com todas as despesas. Esse produto é bom
mesmo, porque o japonês tem um monte de representantes como eu, espalhados nos
cinco continentes, vendendo, vendendo o aparelhinho massageador-vibrador em
todas as línguas que se possa imaginar. Uma vez por ano, o japonês faz uma
conferência de vendas, um encontro pra todos nós dizermos quanto vendemos. São
números impressionantes. Mas mais impressionantes são os lugares em que esses
encontros acontecem: Malibu, Caribe, Costa do Sauípe, Himalaia, Honduras,
Jamaica, já houve até um em Havana, apesar de o japonês ser um capitalista que
odeia ouvir falar em socialismo. Mas no caso de Havana, o motivo foram as
boates...maravilhosas! Aliás, esses encontros são mesmo só pra farra, os tais
números são apenas pra mascarar as farras que o japonês gosta de proporcionar
pra nós, que aumentamos a sua fortuna pessoal em dezenas de milhões de dólares
a cada 365 dias.
Viajo por todos os estados do
Brasil. Acho que já refiz o mapa territorial umas vinte vezes, sem exagero. Posso
estar, num mês, no meio da floresta amazônica, daí a quinze dias no frio de
Curitiba e daí a mais uns dez dias numa cidadezinha litorânea do Ceará. No
Brasil, somos apenas três representantes e não existe essa de área demarcada de
cada um, não. Eu posso me deslocar pra onde eu bem entender, em qualquer
direção, sem dar satisfação a ninguém, nem mesmo ao japonês. O japonês, aliás,
nunca quer saber por onde andam seus representantes. Só quer saber do seu caixa
tilintando. Ao final de cada mês, enviamos o nosso mapa de despesas pra um
escritório que ele tem em Tóquio e eles nos ressarcem as despesas dez dias
depois, no máximo.
Uma noite estava em Floripa e
ouvi uma música no piano-bar do hotel. Eu cheguei de uma visita a uma academia
de ginástica, na verdade um enorme centro de estética que faz de tudo. Eles
estavam interessados em vender o aparelhinho e queriam saber se podíamos fazer
uma parceria e tal. Eu expliquei que não fazemos parcerias, não damos
descontos, não vendemos a prestação. O que podemos fazer, no máximo, é pegar um
cheque para 40 dias. É o máximo que o japonês nos permite facilitar. E também
não vendemos em grandes quantidades, no máximo duas caixas por compra, o que dá
48 maquininhas. O japonês é meio esquisito no quesito adaptação a novas
estratégias de marketing e vendas. É isso e o panfletinho de que já falei, e
só. Mas talvez seja esse mesmo o segredo do seu sucesso. Orientais...
Foi um dia cansativo, aquele da
academia. Convenci, enfim, os donos da academia a ficar com as duas caixas,
recebi um cheque para vinte dias e voltei pro hotel. Pus a malona sobre a cama
e desci pra beber um chope, que minha garganta já pedia uns. Pois estou
entrando no bar, que estava com uma luzinha meio morta e um punhadinho de
gente: um casal num canto no maior love, um grupo de quatro jovens bem loiros,
três rapazes e uma menina, e eu. No fundo do bar, sob um pequeno holofote, uma
moça ao piano. Tocava de cabeça meio baixa e o cabelo grande e caído não
deixava ver muito bem o seu rosto. Ouvi aquela melodia, olhei para a moça no
canto e não tive nenhuma dúvida: era ela.
Tantos anos já. Pelo visto, ela
deve ter deixado de tocar na igreja. Senão não estaria ali, pensei. E já não
era a jovenzinha que carregava o caderninho e estava sempre de vestido. Naquela
noite, pelo contrário, ela estava vestida num tailleur preto, uma calça meio
justa, dava para ver as pernas grossas encherem o tecido nos lados da coxa. Quantos
anos deveria ter? Só que eu não visitava a cidade onde nos conhecemos já se iam
15 anos. Naquela época, ela devia ter uns dezessete anos, presumo, então agora
ia pelos 32, 33, mais ou menos. Mas ainda era encantadora. E, para meu
desespero, estava tocando cada vez melhor, com mais suavidade do que nunca.
Sou um apaixonado por música, mas
um músico frustrado. Nunca consegui aprender a tocar nenhum instrumento, apesar
de já ter frequentado aulas de tudo o que é tipo de coisa: violão, piano,
baixo, guitarra, os de sopro quase todos. Também fui coralista na igreja onde
fiz a primeira comunhão e a crisma. Talvez essa frustração por tocar um
instrumento tenha me levado a ser quase um alucinado por música. Tenho uma
cdteca de fazer inveja a muitas rádios consideradas boas. Só de piano tenho uns
150 álbuns.
Ela tocava divinamente. Os
dedos deslizavam sobre as teclas pretas e brancas do piano. O ritmo perfeito. Até
a postura dela era perfeita: a coluna ereta lhe dava um ar altivo, uma delicada
sinuosidade. Criei coragem e sentei mais perto, levando meu chope. Fiquei bem
pertinho dela, escutando aquela música, abobalhado. Dava pra sentir o perfume
dela de tão perto que eu estava. Dava para ver seu peito subindo e descendo da
respiração. Dava pra ver que ela estava notando aquele cara bem perto, olhando
pra ela com cara de tarado ou de abestalhado, não sei o que ela pensou.
Quando a música parou, não me
contive a bati palmas. Os caras loiros da mesa me acompanharam, o casal não. Quis
perguntar o nome dela, mas uma vergonha absurda tomou conta de mim. A única coisa que me permiti dizer foi que eu
tinha adorado, adorado. Ela deu um sorriso complacente, pegou a pasta de folhas
de saco plástico e se foi.
Nunca consegui me perdoar por
não ter, naquela hora, chamado ela pra mesa, dito que eu a conhecia dos tempos
da igreja, perguntado o seu nome, dito que eu adorava a música que ela tocava
desde que ela tinha uns dezesseis, dezessete anos e me encantava lá na igreja. Que
eu ia todos os domingos, todos os domingos, religiosamente, por causa dela. Ficava
ouvindo os cantos daquelas bandas chatérrimas por causa dela. Aguentava, por
causa dela, ouvir o pastor dizer que eu vivia em pecado e que minha alma ia
arder eternamente no inferno. E que ela me devia ao menos o nome, por todos
esses anos que eu passei ouvindo a música dela ressoar na minha cabeça, de
quando em vez, nos horários mais absurdos. Ela me devia ao menos o nome...
Marcos Fábio Belo Matos escreve às terças-feiras para o Textual.
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