Textual

TEMPOS DE ENCASULAMENTO

                                      












Nos EUA da década de 1990, o termo cocooning, encasulamento (de cocoon, casulo), passou a denominar a tendência de casais, ou mesmo de famílias inteiras, viverem encerrados no conforto de suas casas, com cada vez menos incursões ao mundo exterior. A tendência ganhou o mundo, fortaleceu-se com o advento da Internet, o uso múltiplo do celular, o trabalho em casa, as compras on line e todo o resto que se seguiu.

    Dirão que falo da classe alta, dos ricos, sim, quanto maior o poder aquisitivo, maior o conforto e não se pode comparar uma casa ampla com espaços privativos com um casebre onde pessoas se amontoam. Mas mesmo nas casas mais humildes, algo mudou, não há casa sem TV e também não há pessoas sem celular, instrumento capaz de segurar um jovem dentro de casa o dia inteiro. A maior preocupação dos pais nos tempos pré-internet era a de tirar os filhos da rua e, depois, o de arrancar os filhos de casa e do celular. 

     Nos meses COVID, as pessoas (as conscientes) confinadas em casa, principalmente as mais velhas, lamentam o que poderiam estar aproveitando, restaurantes, cinemas, teatros, shows, confraternizações, etc. O que é proibido cresce no nosso desejo. A verdade é que já vínhamos nos tornando cocooners aos poucos, deixando de cumprir obrigações sociais (olha o nome: obrigações), faltar a shows, No próximo eu vou, teatros idem, Aquele filme tão bom passando, Há outro na Netflix, que também é bom. Passamos a viver entre grades, com medo da volta, na entrada da casa, com bandidos a nos esperar. No trânsito enlouquecedor, dirigir, de prazeroso, tornou-se tormento.

     Em casa, comentamos, Este ano não fomos ver dançar boi no São João, nem comer as comidinhas gostosas dos arraiais. De repente, lembramos que no ano passado também não curtimos quase nada. A neta paulista queria ir ao arraial do IPEM que diziam o melhor; fomos duas vezes, a primeira de carro próprio, nenhum estacionamento; voltamos. Na segunda, pegamos um táxi, e na porta do clube a fila de ingresso serpenteava, longe. Deixamos a neta com uma colega e fomos para casa. Dois dias depois, levamos uma amiga carioca ao arraial do CEPRAMA. Estacionamento lotado, ficamos horas à espreita de uma preciosa vaga.

   Lá dentro, nenhum lugar para sentar, sequer ficar de pé, a aglomeração era tanta que não se divisava nada. O boi dançava quase ao rés-do-chão. Víamos muito bem o topo das penas, ah não era boi, eram índios, porque a hierarquia é assim: iniciantes, dança portuguesa, cacuriá, tambor de crioula, bois menores e lá pras tantas, beirando uma hora da manhã, os grandes bois, Maioba, Maracanã e os bois de orquestra com as índias bonitas e garotões sarados. A amiga carioca subiu em uma mureta e lá ficou, equilibrando-se. Noite adiantada, fomos embora, sem esperar os figurões, pés doendo e estômago vazio, que garçom só apanhado a laço e refrigerante e pratinho típico era pra quem sofria caudalosa fila.

       Muitos creem que após a pandemia as pessoas terão aprendido a valorizar o outro, a presença física reforçando os laços da amizade, haverá mais generosidade, menos egoísmo. Sou mais pessimista.  Aberta a porteira, muitos correram para continuar a fazer o que sempre fizeram, atropelando a todos, em prol de si mesmos; outros descobriram o charme da vida interior, a facilidade de fazer coisas à distância, a simplificação da vida, a delícia de conviver com os filhos, a leitura, a alquimia da cozinha e a interação com as plantas.  Acho que houve um acentuado aumento na tribo dos cocooners.

 

Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Perfeito, Ceres, descascando a verdade das pessoas e das situações, como sempre, com a sinceridade a que te permites. Sou do teu time, acredito exatamente isso, talvez até por reunir duas coisas presentes no teu texto: o fato de que me confesso um cético em relação a muita coisa que propalam com grande alarde, que o ser humano finalmente achou, com esse enclausuramento, sua grande vocação para o amor e a solidariedade; e, a segunda, é que sou ciente de que me tornei um encasulado há muito tempo, bem antes da pandemia (daqui a pouco as pessoas não acreditarão mais em minhas desculpas para não sair de casa)... E, para nós que lidamos com escrita, com leitura, atos prioritariamente solitários, isso se intensifica mais ainda. Enfim, excelente texto, gostei muito.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog