Textual
FERNANDO
PESSOA E A CRÍTICA ESTÉTICA
Quando se fala da obra
de Fernando Pessoa, é impossível não trazer à baila algumas ideias que, de
tantas vezes repetidas, acabaram sendo incorporadas ao senso comum, mesmo que
nada tenham de comum. Muitos versos do gênio português são reproduzidos em
livros, site, camisetas e até mesmo em embalagens para os mais diversos
produtos. Isso faz com que nos sintamos quase íntimos desse escritor ímpar que
se bifurca em uma multidão de seres e se diferencia de seus pares justamente
por se aproximar, de forma distinta, do que muitos deles demonstram ser.
Ferreira Gullar (1996),
em seu ensaio A Razão Poética, adverte que falar da obra de Pessoa equivale a
“mergulhar em um atordoante labirinto de espelhos”, em um “labirinto de dúvidas
e dissimulações”. Ao recorrer a uma imagem que poderia, com mínimas adaptações
servir também para entabular uma discussão sobre as obras de Jorge Luis Borges
ou Julio Cortázar, o poeta maranhense deixa claro que há um grande percentual
de chance de o leitor se perder no emaranhado poético perpetrado por uma cabeça
privilegiada de onde saíram dúzias de heterônimos e onde estão estocados
mistérios suficientes para compor um verdadeiro almoxarifado de mitos, para
usar a interessante expressão utilizada pelo professor Carlos Felipe Moisés
como título de um de seus livros sobre o vate português.
Embora muito já se
tenha dito, sempre haverá muito a dizer sobre a obra de Fernando Pessoa. Neste
breve texto não iremos fazer um exaustivo estudo estruturalista, como o fez
Cleonice Beradinelli, nem buscar as influências orientais na obra pessoana,
como o fez Márcia Manir Miguel Feitosa, nem mesmo estudar o interseccionismo,
que foi muito bem estudado por Sebastião Moreira Duarte. Também não iremos
mergulhar em suas dezenas de heterônimos nem enveredaremos pelas tentativas
psicanalíticas de encontrar traços de uma hipotética homossexualidade de
Fernando Pessoa em suas obras. Nosso objetivo aqui é bem mais modesto. Queremos
apenas mostrar algumas concepções de estética e de teoria literária em
anotações desse gênio português.
Para isso, iremos
utilizar um pequeno livro intitulado Antologia
de Estética, Teoria e Crítica literária, organizado pelo tradutor e poeta Walmir
Ayala, em 1986, e publicado pela editora Tecnoprint em 1988. O referido volume,
por sua vez, pode ser considerado uma síntese do livro Páginas de Estéticas e de Teoria e Crítica Literárias, volume
póstumo, que enfeixa manuscritos e textos mecanografados pelo autor e que
versam sobre a relação entre a Literatura e outras expressões artísticas, de
forma crítica e não raras vezes instigante.
Mesmo não sendo a nossa
intenção maior nessa conversa, podemos dizer que as concepções de Pessoa a
respeito da Estética e da Literatura podem ajudar a compreender melhor o seu
fazer poético e suas motivações de escrita. Por exemplo, é conhecido por todos
os leitores de Fernando Pessoa sua admiração pela obra e pelo estilo do Padre
Antônio Vieira. O poeta modernista chegou mesmo dar ao orador barroco o título
de Imperador da Língua Portuguesa, conforme pode ser visto nesse trecho de Mensagem
O céu 'strela o azul e
tem grandeza.
Este, que teve a fama e
à glória tem,
Imperador da língua
portuguesa,
Foi-nos um céu também.
Tal admiração aparece
um pouco mais estendida nas notas pessoas nas, quando ele diz que:
António
Vieira é de facto o maior prosador – direi mais, é o maior artista da língua
portuguesa. É-o por isso porque o foi, e não por que se chamasse António. O
comando da língua-mãe não vem por varonia de nomes próprios. (p.90).
A preferência por
esconder-se dentro dos poemas, que é uma das mais conhecidas e divulgadas
características da obra pessoana, encontra ressonância em algumas das passagens
de suas anotações sobre estética e literatura. Em determinado momento, ele
defende que:
O
artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime das suas
emoções, aquelas que são comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente,
exprime apenas aquelas suas emoções que são dos outros. (p. 38).
A passagem acima
citada, assim como outras do livro, evidencia uma das chaves da tentativa de
entendimento de poemas como, por exemplo, Autopsicografia – um dos mais
popularizados e divulgados trabalhos do poeta português, que diz:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Embora seja constituído
de textos relativamente curtos, não se pode dizer que a leitura seja fácil,
pois as impressões de um gênio quando colocadas no papel podem ganhar vida
própria e dar margens para múltiplas interpretações. Mesmo assim, de agora em
diante passaremos a explorar alguns dos trechos dos livros, fragmentando o que
já está fragmentado, na busca de tentar compreender as concepções de Fernando
Pessoa com relação à estética é a Literatura.
Para facilitar a
visualização, projetaremos alguns fragmentos.
Para começar, dois
pensamentos que podem ferir quem não seja ligado às letras:
As artes são
todas uma futilidade perante a literatura. (p. 47)
É a arte, e não
a história, que é a mestra da vida (p. 25).
Outra concepção que
pode desnortear o leitor à primeira vista e a que relaciona a beleza física do
poeta à capacidade de produzir poesia. Pessoa defende a ideia de que:
O
artista tem de nascer belo e elegante, pois o adorador da beleza não deve ser
feio ele próprio. E é seguramente uma dor terrível para um artista não lograr
descobrir em si mesmo aquilo que forceja por alcançar (p. 64).
Mas para
compensar o impacto inicial, Pessoa afirma também que:
O valor
essencial da arte está em ela ser o indício da passagem do homem no mundo, o
resumo de sua experiência emotiva dele; e, como é pela emoção, e pelo
pensamento que a emoção provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a
sua verdadeira experiência, registra-a ele nos fastos das duas emoções e não na
crônica de seu pensamento científico, ou na história de seus regentes e dos
seus donos (p. 25).
Ainda
sobre artes em geral, ele continua
A finalidade da
arte não é agradar (...) A Finalidade da arte é elevar. (p. 43).
A arte é apenas e
simplesmente a expressão de uma emoção.um grito, uma simples carta pertencem um
à arte de cantar, à literatura a outra, inevitavelmente:
Os arquétipos
orquestradores de um inconsciente coletivo, ou de um inconsciente social (Eric
Fromm), dependendo da terminologia e da teoria aplicada, acaba transparecendo
nas observações do poeta português, que alerta para o fato de que:
Tudo que se
passa numa mente humana de algum modo análogo se passou já em toda outra mente
humana.
De modo quase sempre
irônico, Fernando Pessoa diversas vezes comenta a atuação do crítico e as
funções da crítica. Para ele:
A
crítica, de resto, é apenas a forma suprema e artística da maledicência. É
preferível que ela seja justa, mas não é absolutamente necessário que o seja.
(p. 51)
E
o crítico é visto como alguém que vive de
Espetar
alfinetes na alma alheia, dispondo esses alfinetes em desenhos que aprazam à
nossa atenção futilmente concentrada, para que o nosso tédio se vá esvaindo –
eis um passatempo deliciosamente crítico, e ao qual juramos fidelidade.
Completando
seu pensamento ele, paradoxalmente, diz que
A
injustiça, aliás, é a justiça dos fortes. No fundo isto tudo é bondade. Dizer
mal de um livro é a única forma de dizer bem dele. (p. 51).
As
artes cênicas também têm seu espaço nas observações pessoanas, para ele:
A sinceridade é
o grande obstáculo que o artista tem a vencer (p. 49)
A base da
interpretação dramática é a falsidade. (p. 63)
Com relação à
linguagem, ele deixa claro que
Um assunto
sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo. Para suscitar
desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica (p. 53).
Em diversos momentos da
obra, ele busca conceituar, de seu modo particular, mas centrado em agudas
observações, alguns termos da teoria literária
Um poema é uma
impressão intelectualizada, ou uma ideia convertida em emoção, comunicada a
outros por meio de um ritmo. (p. 57).
Para concluir, é
importante lembrar que Fernando Pessoa, em seus apontamentos, demonstra total
domínio sobre a noção do que viria a ser sucesso passageiro e o que seria uma
obra que atravessaria o tempo.
O problema da
sobrevivência das obras literárias e dos elementos permanentes da literatura e,
afinal, muito simples. Toda a vida é adaptação ao ambiente, e toda morte
inadaptação. (p. 86).
Algumas obras morrem
por nada valerem: estas, por morrerem logo, são nado-mortas (...) outras morrem
na infância. (...) Outras coexistem com toda uma época do país em cuja língua
foram escritas, e quando essa época termina, também elas cessam; morrem na
puberdade da fama. (...) Outras ainda, por exprimirem coisas fundamentais do
espírito do seu país ou da civilização a que este pertence, duram tanto quanto
essa civilização; estas atingem a idade viril da glória universal. Outras,
porém, sobrevivem à civilização cujos sentimentos exprimem. Estas atingem a
maturidade da vida que é tão mortal como os deuses, que começam mas não acabam,
tal como o tempo.
Estes são os
apontamentos e comentários que fizemos em uma apresentação feita em uma
mesa-redonda para discutir o centenário da Revista Orpheu e os oitenta anos da
morte de Fernando Pessoa, em um congresso internacional realizado na
Universidade Federal do Maranhão, em 2015. Claro que ao ler o livro citado você
conhecerá muito mais sobre as ideias desse autor que ainda tem muito a dizer a
seus admiradores.
José Neres escreve às segundas-feiras para o Textual.
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