Textual
DE COMO QUEIMAR A LÍNGUA
Esta é uma crônica envergonhada. Envergonhada
da língua nem sempre moderada desta própria escrevinhadora. Dessa imoderação, sobreveio
o incidente que veio de ser mencionado no lançamento do livro de poemas “O
Pescador de memórias” do prosador, e agora poeta, Lourival Serejo. Declarou ele,
de público, estar um tanto receoso na ocasião por ser um novel poeta e que a
colega Ceres Costa Fernandes dissera, em reunião da Academia Maranhense de
Letras - sem mencionar algum escritor,
note-se em meu favor – que desconfiava muito de prosadores já maduros que
enveredavam assim, a modo que de repente, pelo mundo dos versos e poemas.
Na
verdade, eu disse e confirmo a minha desconfiança, mas, nesse dia, o dito tinha
outro escritor como endereço. Nem lembrava da nova empreita do excelente
prosador Lourival Serejo.
A
fidelidade da maioria dos escritores a um só gênero literário é tendência
dominante. Incursões a outros domínios há, mas raras e algumas não duradouras.
Não imagino meus gurus da prosa Graciliano Ramos e José Saramago cometendo bons
poemas. Nem o nosso Aluísio Azevedo, também. Casos há de bons prosadores, de
contistas a jornalistas que, ao verem aproximar-se a velhice, têm surtos de saudosismo
confundidos com inspiração poética. Acreditando-se poetas, reúnem amigos para
publicar choramingas rimadas e com isso destroem toda a reputação de bons
escritores que acumularam no decorrer da vida.
Temi
que isso se desse com o meu dileto amigo Lourival. Embatuquei. Que vou dizer da
sua poesia e, inda mais, depois do ele declarou a meu respeito? Ô língua. Porque
fui falar aquilo? Agora estou na linha de tiro. Quem sabe viajo, finjo adoecer ou
passo uns tempos sem aparecer na AML.
Preparada
para o sacrifício, fui lendo aos poucos o “Pescador de memórias”: ora enlevada;
ora emocionada; ora divertida; ora pensativa. Que bom, habemus poeta, não
preciso mais sumir de circulação.
O
texto é limpo, despojado de palavras ou conceitos falsamente complexos,
daqueles em que se espreme o palavrório sofisticado e não pinga uma ideia, um
pensamento mais profundo. O autor se inscreve na linhagem dos poetas de
expressão leve e significação densa, como Manoel Bandeira que diz, em Belo
Belo: “Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples”. O autor de “Evocação
do Recife”, também é um cantor das águas, do rio que guarda seus alumbramentos
da infância, o Rio Capiberibe.
Jogando
essencialmente com apenas quatro vocábulos: Lago, Cidade, Lua, Tarrafa, todos
polissêmicos – os demais não passam de reiterações – o autor constrói um mundo.
Um mundo de sentimentos, um mundo de memórias.
No
imaginário do poeta e da cidade, o vocábulo Lago permeia tudo. Os outros nomes
ligam-se, giram, interpenetram-se, afundam, afloram de dentro do significado
dessa palavra. Lá estão soterradas, na lama viva, as memórias que são pescadas,
uma a uma pelo fino anzol de uma lembrança que perfura a saudade ou uma “canoa abarrotada
de lembranças” trazida pela tarrafa do pescador de memórias.
No
fundo está o tesouro, a prata que cega os que ousam mergulhar nos seus
mistérios. Até a Lua, tão luminosa e alta, que “domina os telhados das casas” e
penetra em todos os espaços, se rende a ele. Só o Lago “tem o privilégio de
abrigá-la em suas entranhas”.
Num
breve poema, “A Placenta”, ele resume tudo o que o lago significa para a
Cidade: “O lago/ é isso mesmo, /agora percebo, /todos percebem:/ O lago é uma
enorme placenta/ que alimenta os filhos da cidade.” Eu digo mais, o Lago não é
apenas a placenta, mas o próprio útero, o líquido amniótico, em que a Cidade está
mergulhada.
Cidade
e poeta confundem-se em um único ente: às vezes, ele é a enxurrada,
despedaçando-se pelas esquinas; às vezes, o seu canto acorda a cidade ou sua
imagem reflete o sol nas pedras ou ele é o filho que joga uma tarrafa no ar e a
abarca, toda, com o seu amor, como no poema “Intimidade”.
Termino
com o mais belo poema do livro, “Tarrafa do Tempo”, ode ao amor acendrado que o
poeta dedica à sua cidade. Com o linguajar das gentes que vivem à beira/dentro
d´água, revela: “Não consigo libertar-me desta tarrafa/sou um peixe
prisioneiro/condenado/a viver preso na tarrafa do tempo” […] “o meu crescimento
é a garantia da prisão. /Quanto mais anos acrescento/mais a tarrafa me
prende/com a certeza de que/nunca fugirei.”
Digo,
por minha conta, que essa prisão não é má. Feliz de quem teve uma infância rica
de sonhos, tantos que o prendam ligado a eles para sempre, terá quando quiser
uma lembrança, ou um barco cheio delas, para preencher a vida. E se, mercê da
sua arte, construir um universo escrito, serão perenizados os instantes de
beleza e exorcizados aqueles que trazem dor, assim como em o “Pescador de
memórias”, de modo belo e comovente, como só os poetas sabem construir.
Ceres Costa Fernandes
escreve às quartas-feiras para o Textual.
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