Textual
RAPEL
OU OS DADOS DE DEUS
& daí se a vida
fosse apenas a vida dentro de um livro de poesia? A obra de um poeta é sempre
uma incógnita. Muitos preferem romances de mil e poucas páginas ou crônicas que
falam do cara mijando pela manhã e comendo a mulher no final da noite (mera obviedade,
infelizmente). Eu prefiro a poesia. Minha predileção é por bons livros de
poesia.
Sebastião Ribeiro, em
pleno século vinte e um, presenteia-nos com um livro de poesia. Que loucura! No
mundo de modismos, de novas tecnologias, de pensamentos zen-isso ou aquilo, de
padrões estéticos… Ele nos apresenta um livro de poesia. Sua estreia.
Talvez, por eu ser um
misantropo assumido e goste de excentricidades, atento-me para os livros. Um
livro de poesia é um cosmo de orgasmos. A música que toca dentro de um livro de
poesia, o perfume, a simetria, a vida e tudo que se possa imaginar são
indescritíveis.
Tudo vem deste &
(livro espaçonave, bálsamo, canto, silêncio, pausa, grito), livro de estreia do
poeta Sebastião Ribeiro. Se por acaso, mas só por um momento, acharem que estou
exagerando, então abram as páginas iniciais deste.
É como uma revoada de
pássaros, um monte de beleza e delírio, um som que quer explodir. Invenções
fora do padrão, uma missa orgástica, a cruz dos dias que passamos parados no
quarto escuro & a saída para tudo isso.
No poema Provisório,
começa a confissão de suas sensatas e belas inquietudes: “o poema consome parte
do tempo que me faria pegar um lotado menos cheio / o poema consome o homem
abatido / queimando seu espírito fora do prazo de validade”.
Até nas metalinguagens,
Sebastião Ribeiro não derrapa. Digo isso, pois, o estilo já fora muito
rebuscado e é sempre bom que se encontre outras saídas. Apesar de que em poesia
tudo ou nada cabe. O poema Rubrica é um deboche/ode não simplória aos vates:
[...]
O poeta na gaveta da
meia-noite inteira
sem nada nos dedos
O poeta com medo de não
ser convidado
O poeta que está nunca
o sendo
O poeta cantando no
último ônibus
O poeta e o corte
social
O poeta azul na garrafa
de vodka
cansaço e refrigerante
O poeta possível na
sala mal-iluminada
O poeta crível no
incandefluorescente
O poeta merecido ao
escuro movediço
O poeta na trilha do
boy que o deixou
em slow-mo
[...]
O poeta na calçada
e o nada metafórico
que ali o respondia
O poeta e o modo de
usar
dos dentes permitidos
O poeta e o
anti-histamínico
quando da volta do
açougue
atrás dum cão conhecido
[...]
O poeta é a senhora de
pernas tortas
vivendo a lição que
ressurreição alguma trouxe.
O ritmo quebrado de
Sebastião Ribeiro é fantástico. É na imperfeição que se encontra a poesia.
Versos belos, palavras belas, contextos belos fujam de nós pelo amor do divino.
Estamos falando de poesia e não de buquê de flores. A feiura, o distorcido, a
assimetria, a discordância dos moldes prontos é a mais pura poesia. Então,
quando Sebastião Ribeiro quebra o ritmo, o faz da forma mais simples e
consciente possível. Não tem medo de ousar, conferir palavras está fora de
cogitação em suas crias. Ainda bem.
& tem o espírito de
um jovem com cabeça de quarenta e poucos. Pois, destila poesia vinda de um
ainda menino de vinte e poucos, mas com os pés e as mãos livres para dar
continuidade a um projeto de vida, que é a sua poesia.
O seu livro de estreia
não poderia ser mais bem arquitetado. Tem conhecimento, vida, tesão,
(des)esperança, tem poesia. É um primeiro livro, mas não é qualquer um. Tem
pontuação. Quem abre e lê o & está pisando em uma rota de gratidão.
O poeta Sebastião Ribeiro
Neste livro, os poemas
que se destacam, segundo o nosso olhar, são: Ninho, Balancete, Matricídio,
Pedágio, 28.12.2011, quarta-feira, 11:31, Contumaz réquiem dos vivos, Mula,
Meio expediente, Este lado para cima, Dízimo, Homofobia, O que fazem as
mariposas quando chove, Calopsia, Ritmo, Fast forward e Futuro: curto-circuito.
Porém, o suprassumo do
livro, o que mais desperta para um caminho de grandeza literária são três
poemas: Mote (& foi-se o tempo dos épicos / & foi-se em seu inverso-interior aluminado o
meu tempo / hoje é a luz receitando meus olhos/ hoje é todos os espaços
contornáveis preenchidos por dúvida); Inevitáveis fotogramas na mente de uma
ave de granja (dia / teu único olho / a boca me despe / 32 fouettés en tournant
/ na casa escura / eternos // inventas algo de frio / tamborilas um crânio que
pende / num corpo de espuma) e o mais profundo e apaziguador poema de todos do
livro: Voltas:
i.
5 da manhã
copo d’água ou banho
frio
quem se apropria de
quem
eu sou Macabéa
com alguma esperança
ii.
na única vez que
criança
fui à praia
o que se afogou
persiste túmido mas
eclipse
de um mistério
habitante
desses que se vê
no olhar do motorista
das 5 30
antes
sentir falta da areia
dormir em caravelas
agora há vazio
no imóvel que não tenho
na calvinkleinjeans que
não uso
na alegria suposta
em servir o Laboratório
Jesus
embalando sua água
sanitária
já poderia fingir
fingir a vida
eficaz e exata
(feito um copo d’água
ou
um banho de madrugada)
se
pudesse sumir rio ou me
esconder salino
em Bengala ou Guiné
mas não
antes disso
é preciso a certidão
de meu estado roxo e
suspenso
sob a lâmina derretida
do estuário qualquer
iii.
A ÚNICA ESPERANÇA que
me ocorre
na cabeça de menino
pedubó
habita este
planeta-estrela à minha frente
enquanto banho no
quintal
às 5 num meio de
fevereiro
Agora é sonhar
maquinalmente
e fingir fingir não saber
dessa conversa
de água e morte até
receber
meu soldo
Bioque Mesito escreve às sextas-feiras para o Textual.
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