Textual
QUITANDAS
No
meu universo infantil, em um tempo mais ou menos distante, habitava uma
quitanda. Era numa rua à beira do Rio Itapecuru, na cidade de Rosário, perto de
casa. Retenho dela alguns flashes: chão batido, potes de vidro com balas
leitosas de listras coloridas e chupetas de açúcar; rolos de negro fumo de
corda no chão, qual cobra enrodilhada para o bote, e um amontoamento de
mercadorias ordinárias, de onde poderia surgir o encantamento de uma máscara de
papelão pintada à mão, um reco-reco, uma boneca de tiras de buriti ou até mesmo
um passarinho de madeira que batia as asas. Compondo outro plano – este se move
– em tons de sépia, estão os caboclos barqueiros, que ali iam comprar fumo e
beber cachaça. De um moreno encardido, com camisas de algodão cru, calças
arregaçadas, pés descalços de dedos escarrapachados, pareciam todos iguais.
Mas, não. Uma coisa os diferenciava: a arte das cusparadas no mascar o fumo de
corda. Havia o estilo próprio. Uns cuspiam, por entre a falha dos dentes, um
jato fino e comprido; outros menos criativos cuspiam de banda, curtinho. Mas
havia um cuja imagem se destaca e se superpõe à dos outros – como uma colagem
–, do qual o cuspo partia fino para se abrir em flor antes de alcançar o solo
de areia fora da quitanda. Coisa de raro talento.
Ligado fortemente à imagem desta quitanda
está a do meu guardião, o querido Tio Janu, sempre no encalço da sobrinha
fujona – ali decididamente não era lugar para meninas – portador de recados
ameaçadores de minha mãe, para os quais, é forçoso confessar, eu me
lixava.
Pulo para São Luís, onde guardo outra
quitanda emblemática: a de seu Guilherme, no Largo de Santiago. Uma quitanda
típica de bairro. Pequena, entulhada de mercadorias que ocupavam as poucas
prateleiras, o chão e o teto, de onde pendiam lamparinas, bonecas de plástico,
canecas, abanos, espanadores e papagaios. Ali, podia-se comprar tudo a retalho:
uma colher de café, uma cabeça de alho ou uma quarta de feijão. O balcão de
madeira rústica, enegrecido do uso e pelo corte do sabão em barra, ostentava a
famosa balança de dois pratos e tentadores vidros de doces com as deliciosas
chupetas açucaradas, mariolas, chocolates Bis, balas de figurinhas...
Ma-ra-vi-lha!
Artistas sempre os há. E na quitanda citadina, a manifestação
artística era do próprio quitandeiro. Eu admirava a espantosa rapidez de seu
Guilherme no empacotamento das mercadorias. Com um papel cinza grosso, apenas
enrolando as bordas com os dedos, sem o uso de cordões ou fitas colantes, ele
fazia pacotes perfeitos. Porém, a sua virtuosidade sublime era o empacotamento
da manteiga. Se alguém chegava pedindo a dita cuja, com o respeito devido à
arte, eu segurava a respiração para acompanhar a cena que viria a seguir. Era
assim: chegava o emissário da dona de casa e pedia “uma quarta de manteiga”; o
quitandeiro tirava de uma lata enorme, com uma colher de pau daquelas de mexer
feijoada de batalhão, porções de manteiga Gaivota ou Flor da Nata, pousando-as
suavemente no prato da balança coberto por um papel “gelatinado” quadrado;
depois pegava as pontas do papel, juntava, dobrava, dava um rasgo no meio da
dobra, outra dobra, e zás, estava feito um saquinho que o comprador levava
seguro pelas pontas unidas. Eu tinha vontade de aplaudir. Quem disse que
quitanda não é cultura?
Por fim, digo que a quitanda era acima de
tudo um espaço democrático. Acolhia os bem aquinhoados nas compras emergenciais
e também os pobres de modo que não se envergonhassem de comprar uma colher de
café ou dois dedos de óleo. Ainda hoje, elas sobrevivem, nas pontas de rua dos
subúrbios, servindo de refúgio aos que, compram aos bocadinhos apenas para a
necessidade da hora. Lá, ainda se vende a cachacinha ou o fumo de mascar – este
só para os mais velhos, que não têm para quem deixar a sublime arte do cuspe
ornamental.
A arte
do empacotamento, com o advento da oitava praga do Egito, o saco plástico,
perdeu-se. Quem souber de alguma quitanda onde se execute o empacotamento da
manteiga a retalho, me avise. Prometo assisti-lo com unção. Mas, se ainda houver algum devoto desse
ofício, duvido muito que ele repita a performance divinal de seu Guilherme. Ah,
isso duvido!
Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.
Uma ou várias quitandas habitam todos nós (nós de um certo tempo), mundo, formação, imaginário. Há muito também na literatura, as quitandas do romance nordestino, de Jorge Amado... e as quitandas do nosso Ferreira Gullar... Uma ou várias quitandas em nossa infância.
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