Textual
PEQUENAS PERDAS
O
motorista baixo e entroncado, de vastos bigodes, e o seu carro, um ônibus
jardineira daqueles abertos, todo colorido, impõem-se-lhe na memória.
Simultâneos. Unos. Indivisíveis. Estranho centauro de bigodes e anca de
arco-íris. Do homem, não consegue recordar o nome, mas o veículo, com
certeza, chamava-se Três Irmãos. Curiosa lembrança.. Com a
lembrança do nome, vem-lhe a de uma história real, quase uma anedota que o pai contava sobre a ocasião
em que o motorista comprou a jardineira,
acontecida em uma cidade do sertão maranhense.
Efetuada a compra do veículo, vai nosso herói, pressuroso, telegrafar
para a esposa dando-lhe a boa nova. No correio, o telegrafista pergunta-lhe o nome do destinatário. Ele diz:
Emília, minha mulher. O funcionário, prestativo, ensina: Não precisa colocar
"minha mulher", basta Emília, o senhor economiza duas palavras. Não
senhor, Emílias são muitas, minha mulher é só uma! E complementa bote aí o
recado: comprei Três Irmãos ventando por todos os lados!
Ri
a essa ingênua lembrança. A recordação do motorista e de seu carro veio-lhe
assim, sem mais, quando pensava numa frase apanhada no ar em meio a uma
conversa: "viver é acumular perdas". Tenta avaliar a afirmação sumária.
Uma tentativa simplista a mais de
definição do ato de existir. Nem
melhor nem pior do que muitas outras, decide. E certamente formulada por um pessimista. Pois não vivemos a perder coisas? Perdemos
dentes, cabelos, viço, bens materiais, amizades, amores, sonhos, entusiasmos, vergonha,
parentes, e - opa! -, também acabamos por perder a vida. A questão maior é se
sabemos como elaborar essas perdas, ao modo e receita freudianos.
Aí
está o pequeno mistério desfeito. A palavra perda fez a ponte - o pensamento
voando rápido em associação livre - para a lembrança inicial. E a relação
perda/motorista/carro a remete aos quatro anos, à sua primeira perda
registrada: um pacote de bolachas. Na verdade não era bem um pacote, mas um
saco de papel pardo de padaria, dos pequenos. As bolachas, daquelas de
polvilho, grossas, maciças e doces, que
qualquer padaria de cidade de interior tem, e as que, nas quitandas, costumavam
ficar dentro dos potes de vidro, espicaçando o desejo das crianças. O
acontecimento infausto deu-se em uma acidentada viagem com os pais, na
jardineira Três Irmãos, numa estrada do interior do Maranhão. Não lembra de
onde nem para onde.
Vê-se de pé, à beira da estrada, de mãos dadas com
a mãe. A estrada de piçarra, depois de muita chuva, transformara-se em um
imenso lamaçal vermelho, cheio de enormes bitolas, que parecia
perder-se ondeando no próprio horizonte. O motorista bigodudo, ajudado
por uns quantos caboclos das redondezas, tentava desatolar a jardineira.
Desinteressada do esforço humano, observava a máquina. O enorme pneu a girar,
girar, num movimento contínuo,
hipnotizador, reproduzido ao
infinito, espirrava gotas de
lama que iam brilhar nas faixas
luminosas dos raios de sol. Tão bonito!...
Súbito,
o movimento cessa. Os homens se afastam da jardineira. A mãe puxa-a pelo braço
e lhe diz: Vem! Vão pegar o carro que, livre do atoleiro, rosna como cachorro
peado. Quer libertar-se e pegar estrada. Correm. Não podem arriscar-se a uma nova armadilha da lama. Na corrida,
tropeça numa bitola e deixa cair o saco precioso, que, aberto espalha pelo
viscoso chão todas, TODAS, as bolachas! Para, estatelada, e ouve a voz
impaciente do pai dizer: Deixe. Não tem importância. Compramos outras mais
tarde. Como não tem importância!? Sente na boca o gosto do não provado.
Lágrimas quentes chegam-lhe aos olhos. As pessoas dentro do ônibus pedem
pressa. Embarcam.
No
ônibus que se afasta, espia pela janela. As claras bolachas, destacadas no chão
vermelho, vão ficando para trás Despede-se delas como de um amante querido ou
de uma pátria deixada pelo exílio. Exageros de criança, julga com um benevolente sorriso.
Da
perda ficou-lhe um hábito, melhor dizendo, uma compulsão. A de entrar em padarias novas ou desconhecidas e pedir as
tais bolachas, tão corriqueiras e baratas -
não mais exibidas em potes vidro -,
tentando descobrir-lhes o mesmo gosto das que apertava ao peito naquela
manhã vermelha. Não é estranho serem as de hoje sempre de uma outra receita? Vai ver que as últimas bolachas da espécie
foram mesmo as abandonadas no lamaçal daquela estrada.
Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.
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