Textual

O CIRCO JARBAS NICOLAU

               

 

                   

Hoje pela manhã, Dr. Ribamar, clínico do hospital municipal, teve esclarecido um mistério antigo. Depois de tantos anos, o enigma do peru que dança mambo desfez-se.  A amena frustração, cultivada com papinhas e mel, desde a infância em Buriti, propiciadora de um incômodo gostoso como a coceirinha de um dartro no pé, foi-se. Tudo resultou de um encontro e uma conversa com o Padre Paulo Sampaio, sabedor de coisas que até Deus duvida e emérito conhecedor de circos mambembes. No ato, o sacerdote matou-lhe a charada. Enfim, o doutor teve a curiosidade satisfeita.

Ribinha se impacienta, inda cinco e meia. Eita siô!. O tempo não andava, ter que esperar até as sete era um suplício.  Tão dizendo que o Circo Jarbas Nicolau  é bom demais. Famoso. O pessoal fala que ele já andou até pelas cidades de Caxias e Timon e, se duvidar, até por Teresina. De ruim é que não tem nenhum animal. Quer dizer, tem o famoso "peru que dança mambo", coisa que nunca vi, mas peru não é bem um animal, assim como um leão ou uma girafa, é mais parente de galinha. Já vira uns retratos desses bichos grandes, no álbum de figurinhas das balas Surpresa. Mas bem que queria ver um de verdade.

Não tinha bicho, mas tinha palhaços e trapezista e o terrível "homem que come gente". Era mais que suficiente para provocar aquele friozinho na barriga. Ali, no Buriti, um circo não era coisa de todo dia. A mãe dissera: só vai se for com a Ritinha. Pra ver a função, além de Ribinha, iam também Maristela, Catulé e Bito. A Ritinha de dona Almerinda, mocinha compenetrada, com os peitinhos nascendo, cheia de juízo, é que ia tomando conta de todos.

Seis e meia. Nada da Ritinha passar. Ô siô! E se perdessem a sessão? Eh, lá vem ela, acompanhada de uma renque de meninos, todos com tamboretes nas cabeças. Pega também o seu e se integra ao cortejo. Têm que andar rápido para achar lugar para os seus bancos. No circo não há arquibancada nem cadeiras. O folheto dizia que cada um levasse seu assento.

Já avistam o Circo Jarbas Nicolau. Riba o acha porreta e Catulé fala: soberbo! O que significa isso, Catulé?  Sei, não. Mas ouvi seu Leutério falar e achei bonito. O toldo do circo é engraçado, feito de uma faixa sim outra não de lona crua, de modo que o circo só era coberto pela metade. O morim das laterais, meio transparente, dava até para ver os vultos que se moviam lá dentro. Aproveitando isso, o moleque Cebola, que não teve dinheiro pra comprar ingresso, sentado num barranco, esforçava a vista tentando, de fora, acompanhar  a função.

Vai começar. Entra o palhaço Farinha com um cabo de vassoura na mão, a cintura amarrada com uma mangueira velha, calçando tênis roídos. Atrás vêm dois homens, com cara pintada de alvaiade, e se põem a conversar. Farinha dirige-se para a dupla e pede a cada um que  pegue em uma  ponta do cabo de vassoura. Isso feito, pergunta: como é o nome deste circo? Jarbas Nicolau, respondem simultaneamente os dois homens. E Farinha: peguei dois bestas na ponta do pau! Risadaria enorme. Eita  siô, é danado, esse Farinha.

É a hora da trapezista. Dizem que ela é de Moscou. Onde é isso? Sei lá, mas deve um lugar longe e, quem sabe, uma cidade maior que Teresina. Entra uma moça baixinha, parda, gordinha, com um maiô de seda preta um tanto desbotado, enfeitado de lantejoulas esparsas e meias de arrastão. Tem os cabelos longos e crespos e um ar de enfado. Desenrola um tapetinho no chão, em baixo do trapézio. Ué, o trapézio mais parece um balanço, tão baixinho, diz Maristela. Cale a boca, você não entende de circo, sua burra! Credo, Ribinha, não falei por mal. A moça faz umas pulitricas em cima do tapete, depois se equilibra em uma tábua colocada sobre um rolo e finalmente, de um pulo, alça-se ao "trapézio". As crianças vibram. Deve ter vindo mesmo de Moscou, essa aí.

A próxima atração, "o homem que come gente" não finalizou por falta de voluntários. Não cabe culpa à direção do espetáculo, como registrou devidamente o apresentador. Venham os fatos. Boy Canibal, o artista, um fortão ruivo sem tamanho, entrou em cena, batendo no peito, arreganhando os dentes e rugindo para a assistência enquanto, aos gritos no megafone, o locutor pedia que se apresentasse alguém da platéia para ser comido. As pessoas da primeira fila fingem desinteresse e discretamente vão arrastando os bancos para trás. Súbito, alguém atira um moleque magricelo no meio da arena. O bruto agarra o coitado e ferra-lhe uma dentada na carapinha. O infeliz escapole e foge apavorado, aos gritos. Alguém mais? ruge o trubufu, rodeando o picadeiro. Silêncio profundo. Boy Canibal retira-se fazendo aquele gesto vitorioso de ganhador de uma luta de boxe.

Ufa! E agora, qual a próxima atração? Já se anuncia: é o peru que dança mambo. Começam a cair gotas de chuva. Poucas e finas, depois grossas e urgentes. O apresentador, pernas pra que te quero. O jeito é correr que a chuva é de trovoada. Bancos na cabeça, pernas ligeiras, no caminho de volta. A enxurrada vem vindo, não dá para prosseguir. Entram, de cambulhada, na bilharina do seu Jair.

O pequeno salão já está cheio de outros refugiados da chuva. O calor é sufocante e o cheiro de urina arde nas narinas de Ribinha.  Na rua, a enxurrada  desce encachoeirada, cavando o barro. E o peru que dança mambo?  No dia seguinte, o circo foi embora levando para sempre o seu segredo.

E agora, sem mais, não é que o Padre Paulo desvenda o enigma?  O grande sucesso dos circos mambembes é um truque simples: pegam uma vasilha com brasas dormidas, põem em cima uma folha de zinco e amarram o peru para que não fuja. A pobre ave, para libertar-se do calor nos pés, levanta ora um pé ora outro, ao som de um  caliente mambo.

Eita mistério mais besta, siô.

 

Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.

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