Textual
SEIS LIÇÕES DE VIDA QUE
EXUPÉRY ME ENSINOU
Antoine Jean-Baptiste Marie Roger
Foscolombe, Conde de Saint-Exupéry, nome dado a Antoine de Saint-Exupéry,
escritor, ilustrador e piloto de aviões. Simplesmente o autor francês mais lido
e traduzido até hoje, tendo obras publicadas em 26 (vinte e seis) idiomas e em,
aproximadamente, 260 (duzentas e sessenta) línguas e dialetos. Fato que por si
só já bastaria para colocá-lo num lugar de honra na literatura universal.
Parte considerável desse fenômeno tem ligação com duas de suas
maiores contribuições à imaginação humana: “O Pequeno Príncipe” (1943), que
vendeu 80 (oitenta) milhões de exemplares no mundo, e “A Cidadela” (1948), obra
póstuma que é a síntese de suas concepções filosóficas. Dois livros que reputo
fundamentais ao Ocidente e cujas qualidades e características ajudaram a moldar
pessoas, transformar vidas e influenciar centenas de escritores durante muitas
gerações.
Mas o que me trouxe a este texto não foram as obras, mas o homem,
a pessoa humana do escritor Exupéry, chamado de Zé Perri pelos moradores de
Campeche, comunidade de pescadores na ilha de Santa Catarina, onde, entre 1929
a 1931, por várias vezes esteve, quando trabalhava no serviço aéreo postal
francês pilotando os aviões da empresa Latécoère, numa rota monumental que ia
de Toulouse a Buenos Aires. Convivência essa documentada em seu livro “Voo
Noturno” (1931), que reúne também passagens de sua experiência e amizades com a
gente simples daquele lugar.
Movido pela magnitude dessa biografia, e mais que isso, pela força
viva da figura simples e sensível de Exupéry, apresento aqui seis lições de
vida que ele me ensinou.
A primeira veio da sua infância e está ligada ao irmão François.
Criados por muitas mulheres (a mãe, uma tia idosa, amas, governantas e três
irmãs), ele e seu irmão (dois anos mais jovem) nutriam uma grande rivalidade.
Um dia, contudo, aos 15 (quinze) anos, François adoece. Doença que se
arrastaria por um mês, até que em dada noite a enfermeira bate à porta de seu
quarto e avisa a Antoine que seu irmão queria vê-lo. Chegando ao quarto do
doente, e à beira da cama, ele segura em suas mãos e diz: “Pega um papel e toma
nota! Vou morrer! Vou morrer e quero que tomes nota de tudo o que vou te
deixar.” Incrédulo, Antoine então diz: “Não, esqueça! Cura-te!” Ainda assim,
com a insistência do irmão, toma nota e arrola uma lista de bens. Na mesmo
noite, François morreria.
O impacto da perda prematura do irmão pesou forte em sua alma. A
partir desse dia, Exupéry aprenderia a jamais ser um materialista. A vida (ou a
morte) lhe ensinara a compreender a força dos mais belos e profundos laços
humanos.
A segunda lição extraio da sua passagem pela Latécoère, empresa
que levava o nome do homem que imaginou o que poderia fazer com aviões (invento
que, à época, ainda engatinhava). Com ele é criada a primeira companhia de
correio postal aéreo da França. Uma ideia a que fora desaconselhado e que se
imaginava irrealizável. Talvez por isso, seu criador então afirmava: “Só nos
falta uma coisa: realizá-la.” E com ele, lá estava Antoine, um destemido
piloto, apaixonado pelo voo, a realizar viagens transoceânicas, num avião com
poucas aparelhagens, sem itens de segurança e durante longos trechos à noite,
ensinando àqueles que ouvem os que dizem que suas ideias não podem ser
realizadas o seguinte: mãos à obra, ajam!
A terceira lição de vida que aprendi com ele vem do deserto. Sim,
o deserto em Saint-Exupéry tem uma presença decisiva. É forte, brilha, fala,
envolve, aquece, acolhe, silencia e amedronta. Está no encontro do pequeno
príncipe com o aviador solitário (inspirado no próprio autor, por certo). Está
nos contos, histórias, imagens e memórias poético-filosóficas da sua “A
cidadela”, apresentada em linguagem alegórica, quase bíblica. Afinal, para unir
os homens e carregar mensagens, em suas cartas e postagens, sobrevoava o Saara,
correndo risco de ser abatido pelos egípcios. Os mesmos egípcios com quem
passara muitas noites a conversar, construindo laços de amizade com pessoas que
antes eram meras desconhecidas. O deserto, portanto, até poderia matá-lo, mas
serviu-lhe de inspiração, evocando, em toda sua aridez, o oposto, a humanidade
de quem pretendia apenas tentar compreender o diferente de um outro modo.
A partir deste aprendizado, ensinou-me ainda mais. Uma quarta
lição, conexa à anaterior: a tolerância. Tolerar o diferente é um exemplo de
imensa humanidade. Justamente um dos traços que melhor caracterizavam a
personalidade do fascinante escritor francês, que ainda hoje muito nos diz.
Aqui prefiro que ele mesmo fale. Ouçam! “Se és diferente de mim, irmão, em vez
de me prejudicares, tu me enriqueces. É essa diferença que faz a minha riqueza.
E é a minha riqueza que faz a tua diferença.”
Chego agora ao quinto ensinamento, certo de que sua grande dor era
escrever. Escrever não era um bálsamo. Era tormenta. Antoine reescrevia quinze,
vinte, trinta vezes seus textos. Era um artífice obstinado, demiurgo onipotente
em suas lindas histórias, pensamentos e palavras. Buscava, talvez por isso, uma
linguagem universal. Escrevia para as gerações futuras. Até porque, como ele
mesmo dizia, “o importante é o invisível”. O invisível do porvir, dos
sentimentos ainda não revelados, dos projetos humanos, de tudo que ainda não é.
O invisível do alcançar, do desbravar. Voava à noite quando não existiam
instrumentos para isso. Voava às cegas. Olhava para onde queria ir e os meios
apareciam. Apareciam os caminhos no ar. Era a vontade, só a vontade o que
contava. Cruzava desertos, terras e oceanos. E conseguia. Ele conseguia.
Afinal, o que é preciso dizer aos homens para que sejam homens? É preciso
dizer-lhes sobre a
essência das coisas. Sobre a natureza das coisas, sobre o
inefável. Porque o invisível aos olhos só é visto pelo coração. E o que é do
íntimo do coração, só se vê ao fechar os olhos.
Mas abro os meus novamente, respiro fundo e chego ao fim desse
trajeto de aprendizados, dessas lições, desse imenso voo noturno sobre o meu
próprio Saara, carregado de pesadas esperanças e guardando em meu coração
(único lugar onde isso tudo poderia caber) a sexta lição que o mestre
Saint-Exupéry me ensinou, e que aqui sintetizo numa frase: “Não esperes nada do
homem se ele só trabalha para sua vida e não por sua eternidade.”
Obrigado Antoine, mestre inspirador! Professor de superação de si
mesmo.
Rogério Rocha escreve às sextas-feiras para o Textual.
Este foi um gênio! Parabéns pelo texto.
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