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 OS POETAS AINDA TROCAM CARTAS

 


Um dos meus melhores amigos e interlocutores, o poeta Antonio Sodré me escreveu algumas cartas que muito me emocionam por sua partilha de palavra-humanidade. Sodré é poeta dos bons e tem uma aguçada visão crítica. Quero compartilhar uma carta desse nobre amigo em que ele comenta sobre o meu livro mais recente. Dediquei-lhe um poema que integra o livro e que reproduzo, aqui, logo depois das palavras do Antonio.

  

A carta (reprodução integral)

 

Carvalho,

 

Escrevo-te com certa urgência, por isso o uso das teclas e não da caneta esferográfica, porque não quereria que o ano findasse sem que soubesse o que tenho a te dizer sobre o teu mais recente livro de poemas – e que poemas. Primeiramente, não li o prefácio escrito por Celso Borges, pois quis me ausentar de qualquer influência, ou como dizem por aí, de algum spoiler literário. E cá entre nós, Celso Borges não é qualquer spoiler. Fico contente que mais e mais poetas com uma trajetória mais longa que a sua, olhem com a merecida atenção para os trabalhos que tem desenvolvido.

Há muito, já não me pergunto sobre o sentido da minha escrita, porque escrever é uma forma de entender o mundo e me fazer entendível. Isso já é um problema superado. Mas entre a simples escrita e a arte, há uma lacuna considerável. São poetas os que transcendem o purismo linguístico e ressignificam a língua como algo sempre capaz de novas e enriquecedoras possibilidades. E é essa a sensação que tenho ao ler e reler as páginas de O homem-tijubina e outras cipoadas entre a folhagem das malícias. Você me conhece bem, e sabe que para mim mais é menos. Mas me surpreendi ao não notar meu estranhamento diante de um título tão longo. Considero-o até instigante à leitura. Entre os títulos de uma prateleira, obviamente, este não seria um que passaria despercebido. Mas o título é referente ao conjunto da obra que é escrita em três atos que se complementam. E assim, formam um só, harmoniosamente. O tiro foi certeiro.

Há trechos que me fazem lembrar os também teus No alto da ladeira de pedra: como um peixe luminescente lançado do alto da ladeira que me compõe; e Dança dos dísticos: quando o indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso. E essa lembrança não está apenas em recortes que de um, encaixam-se perfeitamente em outro, mas porque o regionalismo marcante naqueles, tem em O homem-tijubina uma força maior. O homem que é apresentado no livro, mítico e metafórico, é o retrato e a personificação da resistência. Há tantas passagens cheias de beleza e significado, que mesmo sob um viés regionalista, maranhense por natureza, fazem com que mesmo o (a) leitor (a) menos acostumado (a) a isso, mas que não se dobra a qualquer tipo de servidão, sobretudo ao preconceito linguístico, e que não “digere o ovo do óbvio”, identifique-se e absorva a riqueza dessas expressões, dessas palavras que nos são tão peculiares. Entendo, acredito que assim como você, que o maranhês não é só nosso, é do Brasil e do mundo.

As “cipoadas” são ecos de sobrevivência. Tal qual a tijubina, quem os reverberam têm a pele-couro curtida no sal da dor: a dor que me chora em sangue/é a mesma que em quimeras ri./quanto mais me decepam o ânimo,/mais recomponho a tinta da teimosia. E sobreviver também é se fazer memória, como dizes: o sangue das palmeiras/na pele aberta dos dias,/os tons da tijubina/tingem minha vida inteira.  Memória para si e para o outro.

Há muito que dizer sobre o teu novo trabalho, que estas duas simples laudas não podem mensurar, sobretudo das construções linguísticas. Neologismos como tijuterna, homo lagartiens, tijussapiens, cecileônicos, lorcavalescos, saramaghost, peito lagartístico e calangnóstico, vagamudeia, semprenunca e tantos outros garantem certa leveza e humor no meio de mensagens tão fortes, urgentes e necessárias. Mas como bem diz: as pernas do homem tijubina têm o fracasso como farinha, como a massa de araruta que o alimenta no íntimo. —sem uma pedra na testa, quem pode fazer um bom festejo? ri das próprias perturbações com a dentada suja e incompleta sem muito se preocupar em entender os tipos híbridos que lhe compõem a natureza.

É um trabalho feito com força e ousadia, como a boa e velha poesia pede. Devo dizer que fui mais uma vez surpreendido, no terceiro ato, ao ler o poema “nunca te escrevi uma carta”. Sim, já é conhecido por mim, mas sequer imaginava que estaria no livro. Fiquei com os olhos meio marejados. Digo-te uma coisa: há cartas que escrevemos apenas com o silêncio dos olhos. A sua já chegou a mim há muito tempo antes, e está muito bem guardada, meu amigo.

Esta carta está longe de ser um parecer técnico – e nem tem essa pretensão, mas como é de praxe, eu devo dizer que não retire nenhuma vírgula. Já tenho agora, muito mais que um poema de cabeceira; “a outra margem”, “campo de flores, “a pastora”, “como quem tentasse descrever como o vento e eu dançamos um no outro”, “balaio de soluços”, “os clarões de dentro”, “água de me inundar”, são muitos os poemas-ecos que formam essa emoção sentida em mim. Não quereria ser piegas a esse ponto, mas na falta de palavras, sobram-me sentimento e humanidade.

Desejo que aqueles que venham a ler o teu livro não tenham apenas a mesma sensação que eu tive (se é que isso é possível), mas que esta seja multiplicada infinitas vezes. A tua obra merece esse acolhimento.

Abraços poéticos!

Antonio Sodré

 

São Luís, 29/12/2018.

 

P.S.: poesia ainda que tarde...

 

 

O poema (Livro O homem-tijubina, Carvalho Junior, poemas, p. 53-54)

 

nunca te escrevi uma carta

|para antonio sodré|

 

nunca te escrevi uma carta. nem mesmo para te perturbar com os sofrimentos que invento para morrer à margem dos caminhos que se foram.

nunca te escrevi uma carta. para te ouvir nos meus banzos e desgostos e desesperos nos afogamentos de espelho ao nascer das taperas que amanhecem as aves agourentas da cerca espiralada de enganos do amor.

nunca te escrevi uma carta. talvez para repartir o choro do cântico de nossas árvores/raízes de pedra mergulhadas nas gameleiras acesas da lágrima noturna.

nunca te escrevi uma carta. sempre soube o endereço do barro-louça do afeto mas uma agonia sem tradução de palavra me impede de tecer as linhas que impulsionam sangue e febre e sentimento nos rios contínuos da pele.

nunca te escrevi uma carta. o grito a queda a ferida a cicatriz na ponte perdida da infância me levam para um poço de vidro sem luz, palavra ou algum aceno da menina tôca que também nunca nos escreveu nenhum bilhete depois do adeus dela na rua dos sombriões da aldeia mãe dos braços de fábulas e cirandas.

nunca te escrevi uma carta. quando voltar de shangri-la, após a revelação dos lápis de luz dos lampiões artesanais das ruas do sertão em estilhaço, há a probabilidade de que mais uma vez guarde para depois o desenho incabível nas dimensões de um envelope da carta que sempre te escrevi ao nunca te escrever carta alguma.

 

Carvalho Junior escreve às sextas-feiras para o Textual.

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