Textual
Ao que se foi...
É,
meu caro, agora que você definitivamente nos deixou, talvez possamos pensar com
um pouco mais de calma sobre o tempo que passamos juntos...
Você
chegou em meio a uma grande festa. Muitas expectativas. Muitos sonhos. Todos
esperavam por você ansiosamente. Não eram poucos os que maldiziam seu
antecessor e viam na sua chegada um novo tempo de paz e prosperidade... Quem
pôde comprou roupa nova para recebê-lo. Quem estava desprevenido deu seu
jeitinho e, da mesma forma, comemorou sua vinda. Cada um a seu modo, claro.
Você
não veio pelo mar, mesmo assim, muitas pessoas lotaram as praias para esperá-lo
ao som dos fogos, das músicas, das palmas, do estourar das garrafas de
champagne e do bater dos corações que se comprimiam em demorados abraços e
trocas de sorrisos.
Radiante,
você chegou.
Ficou
conosco o tempo determinado. Nem mesmo um dia a mais ou uma hora a menos. Mas
foi o suficiente para que muitas pessoas passassem a odiá-lo. Acredito que você
apenas esteve na hora errada e no local errado. Você não é bom nem mau. Foi
mais um que chegou e que se foi. Mas as pessoas estão muito tensas para
pensarem nisso. Elas culpam você pelas perdas dos amigos, pelo caos na
economia, pela falta de liberdade para irem e virem, pelas escolas fechadas e
pelos corações temerosos...
Você
foi condenado mesmo antes de um julgamento. Você foi escolhido como vilão de
uma era sem mocinhos ou talvez só de mocinhos.
Já
ouvi dizer que o mundo seria melhor se você não viesse, mas acredito que sem
sua presença talvez nem mesmo teríamos um mundo e um futuro. Sem você, seus
sucessores não terão a mesma força. Sua existência é essencial para que os que
ficaram possam ver o mundo de outro modo. Talvez até tenham um pouco mais de
cuidado com o planeta e com os sobreviventes... Não sei...
Junto
com você, chegaram também um inexplicável medo de tocar e de ser tocado, uma
guerra de informações, um jogo político que apostava mais do que nunca na
confusão e na desinformação. Você trouxe uma avalanche de situações que não
faziam parte de nosso cotidiano.
De
repente, depois da festa de recepção, o mundo parou. As pessoas pararam. Olhos
e ouvidos ficaram colados em notícias atualizadas a cada minuto. Os números de mortos
eram somados em intermináveis tabelas. Os amigos que demoravam a dar notícias
nem sempre estavam em casa. Alguns havia se mudado definitivamente para a
eternidade, sem a possibilidade de um último adeus.
A
tristeza e o espanto foram os fiéis companheiros das pessoas durante seu
reinado. Houve quem utilizasse o tempo disponível para refletir, estudar, ler,
escrever, sonhar... Mas muitos caíram no sombrio poço da depressão e de lá
poucos conseguiram sair sem a ajuda de amigos e dos profissionais que se
desdobram para ter tempo para si, para a família e para as tarefas que se
multiplicavam a cada suspiro.
Nesses
tempos, muitas máscaras foram usadas e outras tantas caíram. Muitos morreram
por causa de uma doença sem explicação. Outros, no entanto, passaram a viver (e
muito bem) em função dessa mesma enfermidade que convidou todos a ficarem em
casa e que possibilitou tantos desvios (de verbas e de condutas).
Faz
alguns dias que você se foi. Partiu sem o barulho dos rojões e entregou para
seu sucessor um mundo em pânico, cercado de desconfiança e de
(im)possibilidades. Muitos não sentirão sua falta, todavia outros viram em você
o melhor momento da história para novos investimentos, para novos desafios... O
fosso social aumentou e agora nele cabe boa parte da nação.
Agora
que você se foi – já condenado pelos juízes do dia a dia – não temos a menor
ideia de como será esse novo império. Será que termos uma vacina contra as
lembranças que você nos deixa? Não sabemos.
É,
meu caro, vá em paz, pois muitos já partiram para ela desde sua chegada. E,
assim, como você, os que partiram não mais voltarão. Mas pelo menos deles
muitos sentirão saudades sinceras.
José Neres escreve às segundas-feiras para o Textual.
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