EM DEFESA DA ”HONRA”
Ceres Costa Fernandes
Há alguns anos escrevi esta triste crônica, certa de que seria logo tornada obsoleta, hoje, vejo com tristeza que ela continua atual. Assim a republico... A honra é pessoal e intransferível. Uma obviedade, sim. Mas, na segunda década do Século XXI, temos notícias que um homem, movido pela sagrada fúria da “legítima defesa da honra”, espancou, torturou, ou pior, matou a companheira que lhe faltou com uma suposta fidelidade. Estes energúmenos, se levados a tribunal. Ainda contam com a simpatia do público (a mulher fez por onde...) e - pasmem! - até a de certos componentes femininos do júri.
Mesmo entre os mais informados e intelectualizados
reina o preconceito contra os maridos traídos, os chamados “cornos”, vítimas de
críticas e gozações. O epíteto, curiosamente, não se aplica à mulher.
O inverso acontece com o adjetivo adúltera, com a
acepção de traição. Certamente, um vocábulo feminino. Li, em algum lugar, que: “adúltera é a mulher
que trai o marido e adúltero é o leiteiro que põe água no leite”. Explicando,
na relação amorosa entre os dois sexos, não há culpa no homem infiel, nem
desonra na mulher traída; mas desonra no homem traído e culpa na mulher infiel.
Essa transferência de “honra” entre os dois sexos, incentiva a violência contra
a mulher e a valida.
Outro motivo da violência contra a mulher é o acirrado
sentimento de posse que domina a maioria dos homens. Lembremos a anedota árabe da mulher que se
queixa ao pai de ter sido espancada pelo marido, ao que ele, indignado, em
resposta, dá-lhe uma bofetada, dizendo: “volta e diz a teu marido que se ele
bateu na minha filha, eu, em troca, bati na mulher dele”. Se eu tenho a posse
de algo, posso dispor dele como quiser, inclusive destruí-lo.
Esse raciocínio advém do uso da força física masculina
na sobrevivência humana ao longo da História. No princípio, esse tipo de força
era a garantia do alimento e da segurança; mais tarde, foi indispensável para
adquirir e manter propriedades.
O avanço tecnológico, dispensando a força para
realização das tarefas nobres, decretou a sua falência. A superioridade física
é cada vez mais desnecessária na Era da Informática, em que as guerras são
resolvidas no apertar de botões e as maiores remunerações são ganhas, não pelos
carregadores de sacas, mas por aqueles que desenvolvem o trabalho intelectual,
Logo cedo, os homens pressentiram que a mulher podia
competir intelectualmente com eles e desafiá-los nesse campo, colocando em
perigo a sua (deles) hegemonia. Assim, a primeira providência tomada foi
alijá-la do acesso à cultura. Desde a descoberta da palavra escrita, ler e
escrever constituíram privilégios do sexo masculino. Na Antiguidade,
permitia-se a cultura apenas às mulheres públicas; na Idade Média, elas
estudavam enclausuradas nos conventos, único lugar onde isso lhes era
permitido; no Romantismo, escreviam romances e poesias sob pseudônimos
masculinos.
À falência da supremacia física, juntou-se a falência
da dominação econômica. Hoje, cada vez menos, elas dependem economicamente do
parceiro. Não são mais sua propriedade. É duro aceitar a nova ordem. Talvez,
aí, esteja a causa maior dos homicídios de mulheres. São os casos daquelas que
abandonam o parceiro e são mortas. As agressões à mulher são mais numerosas nas
classes sociais mais baixas, em que a falta de educação masculina se junta à necessidade
feminina, perpetuando a figura do macho provedor - “quem dá o pão, dá o
ensino”, diz o ditado. Às dependentes, algumas bordoadas, à guisa de ensino; às
rebeldes, metidas a independentes, dispostas a não suportar os sofrimentos, a
morte.
O homem tomado pela santa ira contra a rebeldia de seu
objeto de posse não teme a lei. Nem a Maria da Penha, nem qualquer outra.
Muitas vezes o suicídio segue ao feminicídio.
Onde está a saída? Como sempre, na educação. Educar as
novas gerações, para entender e absorver o impacto do crescimento feminino.
Talvez assim os homens consigam assimilar a mudança sexual, intelectual e
econômica da mulher, sem se sentirem tão ameaçados, entendendo que ela é, antes
de tudo, uma parceira. Nem melhor, nem pior que eles, apenas diferente, com
individualidade própria, e não um mero objeto de posse.
Ceres Costa Fernandes é escritora,
cronista e membro da AML e ALL
Ceres Costa Fernandes se reafirma como uma das maiores cronistas do Maranhão ao abordar com contundência e atualidade a persistência da violência contra a mulher e os resquícios de um patriarcado que insiste em moldar a sociedade com base na posse e no controle masculino. Sua escrita, afiada e crítica, desmonta as engrenagens históricas da desigualdade de gênero, expondo com ironia a hipocrisia dos papéis sociais impostos a homens e mulheres. Ao revisitar essa crônica, escrita há tempos e ainda dolorosamente pertinente, a autora demonstra não apenas seu domínio narrativo, mas sua capacidade de provocar reflexões urgentes, reafirmando a relevância da crônica como instrumento de denúncia e resistência.
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