ESPIRITUALIDADE E ESPANTO:

       A poesia do aqui e do ali

 

Não é prudente dizer que Battista Soarez, com o livro “ESPIRITUALIDADE E ESPANTO, um olhar ao mundo – Poema holístico”, está estreando na poesia, porque cada verso revela um poeta experiente que exorciza o mundo dominado pela pandemia. Dir-lhes-ia, sim, que o poema de sua autoapresentação, “Obscuridade”, foi o seu verdadeiro passaporte para adentrar o mundo dos versos sem dever nada aos bons poetas. Um único verso do poema citado daria para traduzir a primeira impressão de uma poesia apurada: “ali está eu”. Coexistir em seu espaço físico, o “aqui”, e em outro espaço, o ali, é um exercício de altruísmo, porque demonstra a preocupação do seu ser com o outro; também, porque traduz a terceira pessoa na conjugação verbal de seu encontro com o mundo, na atmosfera de uma poesia social que tira da sombra os heróis anônimos invisíveis, na morbidade da fome por falta de um olhar e de um pão. O poeta é lúcido, solidário, coletivo e já existia desde que começou a viver uma vida que não vivia: a vida dos outros.

Reflexões filosóficas não faltam neste livro. Um poema-livro e livre que transita entre as mais diversas correntes do pensamento humano. Ele se vê dentro do mundo e, ao mesmo tempo, observa-o fora dele. Esse fenômeno foi bem explicado por Heráclito de Éfeso: “A parte é diferente do todo, mas também é o mesmo que o todo. A essência é o todo e a parte.” Eis o que Battista Soarez traz ao leitor: um poema holístico em que a parte e o todo se manifestam por meio de um monólogo poético que vai se traduzindo dialógico à medida em que o eu poético se liberta de sua individualidade para ser coletivo, adentrando questões sociais que parecem sentimentos seus, mas que são, na verdade, sentimentos do mundo.

Quem durante a pandemia não chorou e orou? Por meio de um estribilho de fé e lamento, o poeta encarna toda a humanidade, ciosa de sua fragilidade diante de um inimigo invisível e cruel que contaminou todas as nações: e ele ora em todas as bocas do mundo e chora em lágrimas universais. Eis a simetria da intenção cristã dentro desta obra literária: oro e choro, trazendo à tona a invocação de um Deus na fala de Jesus: “Bem-aventurados os que choram” E o poeta verseja: “Eu oro e choro, choro e oro meu choro ora, minha oração chora...” Na mesma trilha, verifica-se a universalidade da dor referente a um mal que é de todos: “Todo mundo chora o choro do mundo”. A pandemia não tem nacionalidade; está no planeta; e, no verso de Battista Soarez, é um motivo de conversa, quase um solilóquio, se não fosse uma dolorosa realidade repostada em todos os seres dos quais ele próprio faz parte. 

Artisticamente, o poema vai sendo tecido sob o alinhavo de muitas vozes costuradas pela leitura crítica que o poeta faz do mundo: o evolucionismo de Darwin, o liberalismo econômico de Adam Smith, o discurso dominante e distorcido dos capitalistas, os neoliberais os quais denominou de fingidos; a piração do mundo em meio a tantos funerais... Ele denuncia o sistema: “império do mundo,/domina os esquemas/em múnus,/a fundo,/no desejo dos homens/com fundo/de monetariedade/ - calamidade – com juros”. Para o poeta, a gente, ante o caos da pandemia, fica entregue à ditadura da vacina;  ele, na sua criticidade discursiva, acusa a implantação da nobreza sobre a pobreza. Tudo são gritos nascidos de uma indignação de quem se fez cidadão do mundo.

Trata-se, pois, de um poema de denúncia que se reverbera através de uma prosopopeia, por meio da qual o poeta empresta sua fala ao canto de um Bem-te-vi, ao denunciar a corrupção: “juro que vi/ e ouvi/ o canto do bem-te-vi/ denunciando o festim/ daqueles que varrem/ o dinheiro público/ do público,/ sem coletivo fim...” E por isso, dá nome aos agentes desse mundo indesejável de usurpadores: “Homens-ratos,/ baratos,/ sensatos,/ conhecidos atos,/ desconhecidos”.

A tessitura da obra é feita de reflexões sobre o mundo, numa rede de relações humanas, existenciais, críticas, sociais, científicas e políticas. Ele também clama pela solidariedade e estende seu olhar à biodiversidade. Um único poema que se veste de inúmeras indagações e indignações, debates e temáticas, escrito em versos livres, mas que vai se edificando por meio de rimas soantes, por vezes toantes, no interior dos versos e em suas extremidades, acasalando vocábulos de terminações similares, como se fossem ecos da magia do fazer poético, sinalizando para a plurissignificação do texto literário.

Dentro do ponto de vista estilístico, o poeta aprimorou e deu mais expressividade ao seu texto no uso de figuras de linguagem, dentre as quais a antítese e o paradoxo, ambas pautadas na oposição, com as quais o eu-poético demonstra, respectivamente, sua esperança e sua fé dentro do mundo; seu espanto e aflições diante desse mesmo mundo. A primeira opõe palavras que já são da mesma natureza de oposição, confrontando, por exemplo, o céu e a terra nos seguintes versos: “Busquemos a Deus, no passo-a-passo,/ no céu e na terra; a segunda opõe ideias opostas entre si,  como corre no confronto da paz sem paz, numa fabulosa estrofe de denúncia social: E, num olhar profundo/do menino na rua/ uma mulher quase nua/descansa em paz/sem paz.

O autor também utiliza a apóstrofe, invocando o poeta que ele o é no coletivo da existência poética: E, então, poeta,/qual é o lema/ do problema?/encerra a cena/esquece o esquema/do dilema”. Entretanto é a anáfora a figura semântica que mais transborda no texto, enfatizando a mensagem por meio da repetição de palavras:  Eu vi,/eu vi./ eu vi. E é com a anáfora que o poeta termina seu discurso. Mas este poema./pode ser holístico,/deve, então, continuar/na mente de quem quiser pensar./ Pensar!Pensar!/Pensar!”. Logo, é o pensamento, na sua fruição, o caminho percorrido pelo poema. Como ele bem o disse, “a inteligência do poeta/é natural, espiritual, social, conceitual, plural/é profundo, sem igual”.  E eis, pois, o poeta Battista Soarez!




                                                                        

                                                                                      Wanda Cunha é poeta e presidente

da Academia Maranhense de Trovas

                                                                             

Comentários

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    1. O texto de Wanda Cunha sobre "Espiritualidade e Espanto" apresenta uma análise detalhada e elogiosa da obra de Battista Soarez, destacando suas qualidades estilísticas, temáticas e filosóficas. A análise dos versos e do teor filosófico do livro é um dos pontos fortes do texto. Cunha estabelece paralelos com Heráclito de Éfeso, trazendo uma perspectiva filosófica para o conceito holístico abordado pelo poeta.

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  2. Interessante análise literária. Wnada, como sempre, muito cirúrgica nas suas reflexões literárias.

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  3. Parabéns ao poeta pelo livro. Parabéns à Wanda Cunha pelo trabalho árduo de leitura, interpretação e cuidadosa apreciação genuína de pontos necessários à introdução da leitura do livro, chamando à atenção para aspectos específicos da Literatura, como as figuras de linguagem.

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  4. Wanda Cunha tem um texto impecável e, de fato, sua análise literária impressiona. O que ela fez do livro "Espiritualidade e Espanto", de Battista Soarez, é um detalhamento precioso que mostra as habilidades de um poeta que escreveu um poema ecoante e lamentoso sobre a pandemia. O poeta transita na alma do mundo e Wanda Cunha mergulha no pensamento do poeta, decifrando cada detalhe do seu poema holístico. Parabéns a Wanda Cunha pela crítica perfeita e justa sobre a arte poética de um autor de versos fortes que sabe fazer das palavras sua arte literária.

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  5. Parabéns a escritora que nós faz vivenciar o puro e profundo do poeta.
    Parabéns ao poeta pela velocidade poetica

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  6. Quanta sensibilidade na analise . Parabens Wanda. Perfeita .

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  7. Parabéns pela análise!

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