JOÃOZINHO RIBEIRO

O poeta dos becos e das bandeiras

 

João Batista Ribeiro Filho, ou melhor, Joãozinho Ribeiro, como o Maranhão inteiro conhece, nasceu no dia 29 de abril de 1955, no coração pulsante do bairro da Coreia, na gloriosa e inconfidente rua 21 de abril, em São Luís do Maranhão. Desde o berço, parecia já estar fadado a empunhar a bandeira da arte com dignidade e coragem.

Filho do feirante João e da operária têxtil Amália, Joãozinho cresceu pelas veredas da vida onde o chão era duro e o pão, suado. De cada um desses lugares, levou um verso, uma canção, um jeito de olhar o mundo com a sensibilidade afiada de quem entende a beleza escondida no cotidiano.

Poeta, compositor, cronista, produtor, gestor cultural, agitador de ideias e de esperanças, Joãozinho é dessas figuras que não cabem numa só definição. Ele é titular da cadeira nº 26 da Academia Ludovicense de Letras, mas sua maior academia sempre foi o povo, os becos, os encontros de esquina, os saraus improvisados e os movimentos sociais.

Compositor versátil, ele já criou para todos os gostos e ritmos, mas nunca deixou de cantar o que importa: a liberdade, a justiça, o amor e a memória de um Maranhão que resiste com poesia.

Joãozinho é o poeta da vida real, das vielas, das utopias. É amigo da arte, filho da cultura e irmão do tempo. Tem alma de Desterro e coração de bandeira hasteada. E, como ele mesmo gosta de provocar, a diferença entre um causo e uma história está na importância da bandeira que se carrega. E a dele, a gente sabe bem, tremula com força no alto do mastro da cultura maranhense. 

Joãozinho Ribeiro é o nosso entrevistado de hoje na coluna "Revel".

  

Bioque Mesito Já aconteceu de uma música tua começar como poema, mas acabar virando outra coisa... tipo uma cantada (ou uma treta)?

Joãozinho Ribeiro Como exemplo típico, cito o clássico “Milhões de Uns”, gravado originalmente pela cantora Célia Maria. O primeiro poema de minha autoria que musiquei só posteriormente. Passei um tempão engendrando esta realização. Meu processo criativo musical, em geral, se dá com a construção de letra e melodia simultaneamente. Neste caso, foi totalmente diferente.

 

BM Na tua opinião, sexo combina mais com poesia ou com música? E tem alguma canção ou verso teu que foi inspirado por um “pecado bem vivido”?

JR Esta questão é bem pessoal. No meu caso, não saberia distinguir, por ser o meu processo criativo lítero-musical. Sim. “Coisa de Deus”, parceria com o cantor e compositor Betto Pereira.

“Um bis, um blues / Dois corpos nus / À meia luz, a noite é cruz / Veneno no copo da manhã”.

 

BM Tu te consideras mais poeta ou mais músico? Qual dos dois te trai mais nos palcos da vida?

JR Minha resposta é única e definitiva. Sou um poeta que faz música!

“Se eu cometo uma canção / E me sinto impune e são / A palavra sempre tem razão”.

 

BM Teus versos falam muito do social, do coletivo, mas também têm um lirismo. Dá para fazer arte engajada sem virar panfleto? Onde é que mora o risco da alienação?

JR Sempre fui e serei bastante sincero e exigente com a minha arte. Ela é um reflexo inacabado da minha existência. Não consigo escrever ou criar melodias fora do ciclo do viver, do sentir, e do experimentar. Sou muito preocupado com a qualidade do que faço. Por conta disso, muitas composições e poesias foram parar na lata do lixo. Depois de algum tempo, entendi que a criação pode ser lapidada, e passei a trabalhar com a perspectiva de uma elaboração mais flexível do ponto de vista da cobrança intelectual. O engajamento é consequência natural da nossa posição diante do mundo; o resto é consequência da seriedade com que você trata seu processo de produção criativa. A alienação só encontra terreno fértil para se procriar quando há um rompimento do artista com a dignidade da sua arte, ou da sua própria condição humana.

 

BM A cena artística atual te inspira ou te dá vontade de tomar uma dose dupla de realidade? Quem tu achas que ainda está fazendo arte com sangue nos olhos e brilho na voz?

JR A cena sempre se renova e inova. Como já disseram antes de mim, a única coisa permanente no mundo é a mudança! Se o Brasil fosse um verbo, só admitiria ser conjugado no plural. Somos muitos Brasis! Nosso estado, apesar do abandono das políticas públicas de cultura pelo governo atual, vive um momento de muita produção de excelente qualidade, tanto na capital como no interior. Do cordel ao cinema; da música ao teatro; da cultura popular nem preciso falar. Nossa Literatura, nossa poesia, geraram tantas coisas belas nos últimos anos. Não gostaria de citar especificamente pessoas ou grupos, para não cometer injustiças. O show “Mostra 4 70” que estou realizando juntamente com os monstros sagrados da música feita no Maranhão – Josias Sobrinho, Sérgio Habibe e Chico Saldanha – é um exemplo do que estou falando.

 

BM Já rolou alguma situação absurda (ou hilária) num show ou recital que tu lembras até hoje e pensas: “só sendo artista mesmo para passar por isso”?

JR Muitas e tantas. Uma delas: Em 2012 realizei dois dias de show no Teatro Arthur Azevedo, com vários convidados, dentre eles: Coral São João, Zeca Baleiro, Chico César...O nome do show era “Milhões de Uns”, gravado ao vivo. A casa lotou completamente no primeiro dia. Acho até que venderam mais ingressos do que a lotação comportava, porque vi gente sentada no chão. No final do espetáculo, todos os artistas que se apresentaram subiram no palco para agradecer ao público. Zé das Chaves tentou subir e não conseguiu. Algum espírito de porco da plateia deu uma mãozinha... Só que ele tropeçou e acabou caindo, ficando de cara pra cima, sem conseguir levantar, em cima do palco. Tipo barata chapada de inseticida. Só que nestas alturas as palmas eram tantas, e o público aplaudindo de pé, nem ligou para o incidente. Um dia desses me mostraram um vídeo com esta cena hilariante... hehehe.

 

BM Quais poetas e músicos te ensinaram a sentir o mundo com mais coragem? Tem alguém que te virou do avesso só com uma frase ou um acorde?

JR Em 1974, ganhei um festival de música e de poesia do colégio em que cursava o científico, o Cardoso Amorim. Nos anos seguintes, não lembro bem, ganhei um outro concurso de poesia promovido por uma instituição literária respeitada na cidade. Lembro que a entrega dos prêmios aconteceu no Hotel Central, e o júri era composto por grandes vultos da literatura maranhense da época: José Chagas, Nauro Machado, Chagas Val, Jomar Moraes, Arlete Nogueira da Cruz... O prêmio era uma coleção de livros de autores maranhenses, que até hoje permanecem na minha biblioteca. Nesta época, chegou até às minhas mãos “Dentro da noite veloz”, de Ferreira Gullar, lançado em 1975. A porta de entrada definitiva para a poesia, sem passagem de volta. Na música, a coisa se deu por meio de dois passaportes, por assim dizer: meu primo Adler São Luiz, poeta, cantor e compositor, que morava conosco num casarão localizado na Rua Afonso Pena e se mudou para o Rio de Janeiro no início dos anos 1970; e com o lançamento do primeiro LP de Nonato e seu Conjunto, com músicas autorais de compositores maranhenses, em 1974. Foram viscerais!

 

BM O artista, seja poeta ou músico, ainda é um pária social ou já virou peça decorativa? E tu, já te sentiste invisível mesmo quando estavam te aplaudindo?

JR Arte e a Vida são umbilicalmente dependentes. O artista é fruto do seu tempo, todo tempo. Para o bem ou para o mal. Vivemos um tempo bastante difícil e complicado, feito de muita intolerância, preconceitos e violências de todos os gêneros. O renomado escritor cubano Alejo Carpentier acreditava que, finalmente, viveríamos um outro tempo e refletia: “Para mim terminaram os tempos de solidão. Começaram os tempos de solidariedade”. Ainda penso assim. Não penso o artista apartado do processo social. A solidão da arte, às vezes é também uma realidade vivida.

“O poeta pinta paisagens / De tempos e lugares, / Do acontecer solidário / Por vezes solitário, / Por vezes solidão, / Atreve o poema / E pede passagem / Para os seus personagens / No meio da multidão”.

 

BM O que te move mais: o silêncio depois do aplauso ou a inquietação que te obriga a criar?

JR A inquietude faz parte da minha natureza. Em 2004, participando de um seminário regional de cultura na cidade de Rio Claro (SP), ouvi uma frase do então ministro Gilberto Gil, que nunca me saiu da cabeça: “O silêncio é a linguagem dos deuses; o resto é má tradução”. Para mim, tudo é feito de silêncio e som. A palavra é a forma que inventamos para dar significado para os seres e as coisas que compõem a existência. Ou, como diria o Keith Richards: “O silêncio é a tela do músico”. Aplauso e silêncio me movem e me comovem.

 

BM Tua arte tem crítica, mas também carrega uma leveza irônica. O humor é uma forma de suavizar a pancada ou um meio de suavizar a existência?

JR Chego a ser, às vezes, irresponsavelmente otimista e gozador. Zeca Baleiro uma vez falou que eu carregava nos ombros, em alguns momentos, a insuportável esperança...hehehe. Tinha 9 anos (1964) quando fui acometido de um câncer agressivo (sarcoma de mandíbula). Cheguei no Rio de Janeiro, com a minha mãe Amália, praticamente desenganado. Fiz uma cirurgia que durou 8 horas no Hospital Gaffrée e Guinle, localizado na Rua Mariz e Barros, no bairro da Tijuca. A Medicina me deu 5 anos de sobrevida. Este ano completo, no dia 29 de abril, 70 de existência, e 60 de uma batalha vitoriosa contra o câncer. Acho que não morro mais nem que me matem! Acho que respondi com louvor... kkk!

 

BM Se a arte fosse uma cama, tua poesia dormiria de conchinha com a tua música ou cada uma viraria para o lado e sonharia sozinha?

JR Sou um poeta definitivamente lítero-musical. A música e a poesia me habitam de forma compartilhada, numa comunhão existencial sem precedentes. Irmãs inseparáveis e insuperáveis. Minha memória é música!

 

BM Qual foi o maior pesadelo da tua carreira artística? Aquele momento em que tu pensaste: “vou largar tudo e fazer algo mais produtivo”.

JR O Ariano Suassuna costumava afirmar: “Não faço distinção entre a literatura e a vida”. Vida e Arte em mim se confundem. Sou poeta 25 horas por dia.

“Sou cantador do tempo / E o tempo tenho cantado / Tempo que falta é futuro / Tempo que sobra é passado / Cantador que canta só / Canta mal acompanhado”.

 

Comentários

  1. Que matéria/entrevista/poesia musicada é essa meu amigo Bioque?!?!
    E que astúcia laboriosa foram as respostas para cada um dos teus questionamentos! O privilégio que cabe apenas a quem tem Joãozinho por trás do espelho. Bravo👏👏👏👏👏

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