MARIO LUNA FILHO

Meio século de poesia

 

Uma das manias que tenho é não abandonar um livro durante o processo de leitura. Mas, confesso, há livros que leio com a esperança de que o tempo acelere ao máximo para me livrar dos tormentos que se escondem por trás das páginas e das linhas. 

Felizmente, também existem aqueles livros que me prendem de tal modo que sinto vontade de pedir para o relógio parar só para poder aproveitar mais e mais cada uma das palavras ali impressas. 

Esse segundo grupo é imenso e ensejaria uma lista enorme e sempre crescente. Hoje, irei destacar dessa lista o livro Do sapato ao pé descalço, do poeta e médico Mario Luna Filho. Sempre que posso leio esse volume de apenas 95 páginas, mas que tem a potência artística de mil toneladas de palavras empilhadas na bruma das emoções.

A primeira edição do livro é de 1975 e este ano completa sua quinta década encantando seus leitores. Como mesmo o tempo é capaz apenas de amarelecer as páginas de um livro e de transformá-lo em raridade bibliográfica, sem envelhecer seu conteúdo, é possível ler, em pleno século XXI essa coletânea de poemas como se cada verso tivesse sido escrito no início deste ano de 2025, tal a atualidade dos textos de Mario Luna Filho, poeta que sabe transformar olhares e sentimentos em palavras. Como não tenho a primeira edição, recorro então à segunda, publicada em 2016.

Hoje, releio os poemas desse livro e percebo que o poeta, atento ao fato de que…

 

Apenas sonhando

os nossos olhos

conquistando 

estrelas… (pag. 48)

 

O poeta mescla em seu livro trechos de extrema sensibilidade com potentíssimas críticas sociais. Se, em uma página fica a mensagem dizendo que “Há uma janela aberta para a liberdade” (pág. 39), bem antes é relembrada a triste figura de Pedrinho, um menino “sem sobrenome”, que “nunca viu Papai Noel” que é “o filho da esquistossomose” (pág. 30). 

Caso esse menino tenha sobrevivido às agruras de uma vida mesquinha e incerta, com uma breve mudança de nome, ele poderia servir como ilustração e exemplo para outros poemas do livro, como é o caso de Canção da estrada, que traz João, um garoto aparentemente cheio de sonhos, mas que se perdeu nas esquinas da vida e teve que lutar pela sobrevivência. Desse modo:

 

(...)

João já não canta 

um samba de amor.

lata vazia,

lata-tambor,

lata sem nada

no meio da estrada,

lata que o carro amassou.

 

E assim o João se foi,

esqueceu o samba,

esqueceu o amor. (Pág. 82)

 

Quase seguindo os passos estéticos de Augusto dos Anjos, o poeta lembra a seus leitores que:

 

Somos vísceras do universo!

As mil bocas da terra

clamam por nós 

em ritmos de covas. (Pág. 69)

 

Ele também reconhece que nem o futuro, nem o presente estão perdidos, pois ainda pode haver esperança dentro de casa um de nós, afinal:

 

Ainda existem mãos 

para dizer adeus.

Ainda existem sonhos

para cultivar eternidade. (Pág. 44)

 

Ao longo do livro, o leitor tem oportunidade de mergulhar tanto na beleza estética dos versos de Mário Luna Filho, poeta que recebeu elogiosos comentários leitores existentes como é o caso de Conceição Quadros, Fernando Braga, Carlos Cunha e Erasmo Dias, e que sabe imiscuir na simplicidade das palavras a complexidade do fazer poético, tornou-se um dos poetas a atravessar gerações sem perder o fôlego e deixando claro que:

 

Meu verso anda descalço 

como o meu povo

e é marquise 

para alma sem teto. (Pág. 63)

 

Do sapato ao pé descalço é um desses livros que 

 

“Fecunda o vazio das horas

e o vazio das consciências” (pág. 57)

 

Vale a pena ler todos os poemas deste grande poeta que é Mario Luna Filho… 

 

José Neres é poeta, escritor, membro

da Academia Maranhense de Letras

                                                                   

Comentários

  1. Grata, Neres, por nos apresentar mais de Mário Luna. Conheço poucos poemas, que inclusive já tive a honra de declamar.

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  2. Bacana esses textos (resenhas) que nos convidam para a leitura. Professor José Neres sempre muito pontual nas suas impressões literárias. Grata!

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  3. Obrigado pela gentileza. Os poemas de Mario Luna Filho são um convite para a leitura. Isso torna tudo mais fácil.

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  4. Luna e Neres são maravilhosos e juntos elevam ao quadrado a beleza da vida, apesar da crueza, a prova está aqui também nesse primoroso texto.

    Fecunda o vazio das horas
    e o vazio das consciências” (pág. 57)
    Que germine essa fecundação!
    Minha admiração,
    Dilercy Adler

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  5. Luna e Neres são maravilhosos e juntos elevam ao quadrado a beleza da vida, apesar da crueza. A prova está aqui também nesse primoroso texto.

    "Fecunda o vazio das horas
    e o vazio das consciências” (pág. 57).

    Que germine essa fecundação!
    Minha admiração,
    Dilercy Adler

    Obs: texto ajustado.

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  6. Neres e Mário, Mário e Neres, seres humanos fantásticos. Segui-los e participar dessa fascinante aventura de percorrer o mundo encantatório da poesia. Creio tê-lo conseguido ao desatar os nós dos sapatos, que é de onde vem toda essa força poética. Colocando-a em movimento, animado por um único desejo: o de ser lido. Parabéns!!

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