POESIA DEU À LUZ
Na hora
do parto, foi um alvoroço. Poesia, no começo, fez um escândalo tamanho, que eu
pensei que seria necessária uma cesariana. Sua idade avançada suscitava uma
gravidez de alto risco. Há bem pouco tempo ela havia tido um aborto espontâneo.
Mas tudo transcorreu bem, depois do pasmo de dor. Estava ali uma bela quintinha,
cinco pequeninos versos que ela foi entregando, quase pari passu, ao
mundo. Apenas o primeiro verso saiu em delongado espaço de tempo em relação aos
outros. Pensei até que daquela gestação fosse fluir apenas um verso
monossilábico. Mas, na medida em que vi verso por verso sair de dentro de
Poesia, percebi que ela me daria uma estrofe em redondilha maior, maior do
que sua infrutífera primeira gestação.
O
primogênito era, sem dúvida, um verso branco, igual ao caçula, com traços da
mãe. Os três do meio, esses, sim, saíram ao pai. Traziam uma aparência singular
do estilo de Omar Khayyam, ainda que não fossem descendentes do Rubaiyat. Ela e
um persa acasalaram-se por um curto período de tempo. Ele, por ironia do
destino, supria um amor ao vinho e à música, sempre dormindo sobre as mesas do
bar em que morava. Os recém-nascidos ainda não conheciam o pai. Por isso, eu
queria dar-lhes nomes, antes que o conhecessem, mas eles eram pequenos demais
para que se pudesse definir o gênero de cada um. Não obstante, fiz uma lista de
nomes, muitos dos quais as minhas filhas não gostaram: Écloga, Elegia, Ode,
Sáfico, Epopeia. Pensei até em Mahabárata, Ramáiana e Sacuntala.
Entretanto,
Poesia não estava preocupada com o nome que eu daria aos seus filhos. Seu
primeiro momento de parturiente foi de inteira dor, seguida de preocupação e
responsabilidade maternais. E foi sob esse clima que se deitou ao lado dos quíntuplos
e deixou que eles disputassem seu leite, para depois dormitarem sobre suas
tetas...
Em
frente da televisão, eu assistia à notícia da mãe que, em Imperatriz, matara o
próprio filho. Poesia, ao meu lado, assistia à reportagem sem fazer
comentários, entregue ao momento singelo do aleitamento. Ela nem piscava.
Silente, exibia um olhar azul, como os seus olhos...
Foi,
então, que percebi o contraste da natureza. Mães que amamentam, diante de
outras que matam... E lembrei que nunca ouvira a notícia de que algum bicho
cometesse tamanha atrocidade. Li, entretanto, há pouco tempo, na Super
Interessante, que a constituição física do porco é muito parecida com a do
homem. E reconheci, diante do noticiário, que não é apenas a constituição
física que define essa similaridade. Afinal, os atos humanos chegam a ser mais
torpes e abjetos; os sentimentos, mais obscenos e vis.
Algumas
mulheres sentem-se insultadas quando a denominam de vaca. Denominar de vaca uma
mãe que mata seu filho, é, sem dúvida, insultar a vaca, que dá de mamar a seus
novilhos e propicia ao homem inúmeros produtos utilitários, como a cola e a
vacina, extraídas do seu sangue; como o sabão e a tinta, derivados do seu sebo;
como os cosméticos e remédios, originados dos tendões de suas patas; como os
filmes fotográficos, oriundos de seus ossos; como o fertilizante, de seu
estrume. (V. Super Interessante, edição 192, setembro, 2003).
O certo
é que o menor está sendo açoitado amiúde em todo o Brasil, enquanto a maioria
cruza os braços. Em cada semáforo de São Luís, por exemplo, há inúmeras
crianças e adolescentes jogados à marginalização. E no intervalo de uma limpeza
que fazem, com uma flanela suja, a um para-brisa de carro, eles aproveitam para
cheirar cola diante de guardas, cegamente obstinados, que só se preocupam em
multar aqueles que furam o sinal. Nos seus silvos alongados, eles não querem
saber se o motorista pisou o acelerador com medo de um menor, ou com raiva de
um maior que permitiu tamanho vilipêndio. Tudo fica por conta do descaso. E,
depois, chegam as multas para os motoristas e para os menores, que são, aos
olhos das autoridades e da sociedade hipócrita, os que cometem as maiores
infrações no trânsito da vida. Até os pais escondem suas
responsabilidades e transferem sua culpa a terceiros.
Enquanto
isso, Poesia deu à luz. E não permite que ninguém chegue perto de seu leito
para assustar seus filhotes. Depois que pariu, nunca mais deu uma volta sobre o
muro. Se fosse humana, não seria tão dedicada. Entretanto, é apenas uma gata
siamesa, que não cobra pensão alimentícia pelo desinteresse do gato persa,
aquele que lhe dera tão grande prole. Assim, na medida em que leio reportagens
sobre pessoas que matam seus semelhantes, descubro que o homem alcança de tal
forma seu estágio de imperfeição, que os bichos estão, a cada dia, melhores do
que ele. Por causa disso, passo a mão sobre os pelos da minha gata. Ela nem
precisa miar. Seu silêncio traduz amor e fidelidade aos filhos. Seu olhar
esboça uma prece de carinho jamais ouvida em língua alguma dos homens.
Sim, em meio a tantas notícias de infanticídio e de violência contra o
menor, Poesia deu à luz. Ainda bem que Poesia não é humana!...
Wanda Cunha é poeta e presidente
da Academia Maranhense de Trovas
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue bela crônica nos brinda Wanda Cunha, visceralmente humana, ou melhor, felinamente humana, nestes tempos em que os humanos regrediram à barbárie e os animais dão lições de empatia, solidariedade e amor. Belo texto, eivado de humanismo e profundidade. Vida longa a Poesia e a seus cinco lindos versinhos.
ResponderExcluirObrigada, Viriato Gaspar! Seus comentários sempre me enchem de júbilo e satisfação, porque você não só é fiel às suas convicções, mas, também, porque é um dos grandes escritores desta safra contemporânea. Wanda Cunha, sua admiradora
ExcluirA crônica de Wanda unha mergulha e gera depois cresce e encanta não morre faz refletir
ResponderExcluirSabiamente na inspiração do cotidiano. Quem ler e quem ouve há com certeza você o que de fato a autora escreve
Bela crônica querida Wanda Cunha!Sempre muito inteligente e criativa .
ResponderExcluirBela crônica querida Wanda Cunha!Sempre muito inteligente e criativa.
ResponderExcluirObrigada, poetisa querida! Você também é muito criativa em sua poesia. Abraço desta Wanda Cunha
ExcluirA poesia, deu a luz com seu maravilhoso texto. Muito bom ler Wanda Cunha.
ResponderExcluirUma inspiração l, ouso dizer, divina e sublime. Um texto impecável. Numa prova de que apesar de todos as adversidades da vida, a poesia sempre estará como um personagem aliviando os males.. Graças a Deus temos a Wanda Cunha nessa nossa conturbada geração.
ResponderExcluirMuito forte, mas traduz poeticamente um viés não muito bonito do cotidiano, embora entrecortado por momentos de beleza. Parabéns, querida Wanda! Beijos, Dilercy.
ResponderExcluirObrigada, Dilercy! WANDA CUNHA
ExcluirA crônica de Wanda Cunha é uma bela alegoria do que se espera de uma maternidade idealmente saudável. Parabéns!
ResponderExcluirNicolau Fahd
Obrigada, Nicolau! Suas colocações sempre lúcidas. Wanda Cunha.
ResponderExcluirmaravilhoso texto. Muito bom ler Wanda Cunha. Parabéns
ResponderExcluirParabéns pela belíssima crônica, querida Wanda Cunha. Sempre um prazer ler seus textos, que nos remete a uma reflexão profunda.
ResponderExcluirAbraço afetuoso.
A sua paixão pela escrita é contagiante, continue a inspirar!"
ResponderExcluirObrigada, Paty! Um beijo desta prima Wanda Cunha
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