UM PSICANALISTA NO SUPERMERCADO
Sempre ando com um livro aonde quer que eu vá. Livros são uma espécie de meditação para mim. O mundo desaparece e somos só eu e o livro. Semana passada, estava numa fila imensa de supermercado. Pesquei da mochila um Emmanuel Carrère e comecei a ler para não pensar no tempo que perderia naquela espera até o caixa. Foi então que uma moça falante, com um bordeaux nas mãos, juntou-se à outra que estava logo à minha frente.
Ambas conversavam animadamente sem parar e eu fui me interessando mais pelos dramas amorosos das moças do que pelo Carrère narrando suas experiências imersivas na ioga.
A mais falante e exuberante era a do bordeaux. Dizia que se apaixonou por um cara casado e de classe social muito diferente da sua. Passou um ano ouvindo-o falar que se separaria da esposa tóxica. Mas ele nunca conseguia, tão apaixonado que era por sua mulher. Como ela também era casada, não o pressionava para nada. Pelo contrário, queria até que permanecesse casado. Estava bom como estava. Súbito, ele decide separar-se e, mesmo sem acreditar, ela diz que ele poderia contar com ela.
Pelo que pude perceber, acho que ela se colocava o
tempo todo nessa relação como apoio material e afetivo para esse homem, e ele
não valorizava isso. Era-lhe cômodo contar com ela, mas não a fazia se sentir
desejada, amada, admirada. Eu, louco para me meter na história e perguntar-lhe o porquê de ela continuar
nessa relação, mas não podia. Continuava fazendo semblante de desinteressado na
história. Conversa vai, conversa vem — a amiga pouco intervinha a essa altura, quase só
escutava —, ela conta que o homem revelou-lhe estar apaixonado por uma garota
do trabalho.
Pensei: agora ela vai dar um chega pra lá nele. Totalmente enganado. Ela calculou que tudo continuaria igual: ele com alguém e ela com o marido, e continuariam juntos.
Contudo, o passar dos dias foi indicando-lhe que não
seria bem assim. Ele continuava a demandá-la como suporte financeiro e ombro
amigo para chorar seus dramas. Ao que ela prontamente atendia.
Sentia-se beirando o insuportável a constatação de que
ele fazia com a namorada tudo que nunca fizera com ela e nem com a esposa:
papel de namoradinho romântico e apaixonado.
A sua companheira de fila finalmente pergunta-lhe
algo: “E o que você fez, amiga?”.
Nada. Diz ela. Estou sofrendo, mas tentando disfarçar bem por orgulho. Aliás, a única coisa que consegui verbalizar foi que gostava e me sentia importante sendo seu apoio, mas que gostaria de me sentir como a namorada dele está se sentindo. Ele me saiu com a seguinte pérola: você quer mais atenção. Vou ficar atento a isso porque você está pedindo. Eu queria dizer tantas coisas nessa hora, mas o sentimento de vergonha e humilhação eram tamanhos que interditaram minhas palavras. Perguntava-se ainda se o cara era burro mesmo ou só indiferente a ela a ponto de não ter nenhum cuidado em poupá-la dos detalhes sórdidos com a outra, que agora era oficial.
Quando me dei conta, estávamos à boca do caixa. Elas
passando suas compras e eu na esperança de que ela contasse algum desfecho:
daria um basta a esse gozo na insatisfação? Continuaria neuroticamente se
contentando com migalhas, sentindo-se menor do que realmente era?
Adoraria perguntar-lhe qual era mesmo o gostoso de se
colocar num enrosco desse?
Ela parecia culta. Era bonita, elegante. Imagino que
possuía hábitos refinados, bem diferentes do homem simples que descreveu.
Talvez, por carregar nas compras um bom bordeaux, eu a supunha refinada.
Pagaram as compras e afastaram-se empurrando o
carrinho com umas duas dúzias de produtos.
Enquanto elas se distanciavam de mim, pensava: nem deu
tempo de saber nada do seu marido. Como se chamaria essa jovem Emma Bovary do
supermercado? Teria filhos ou não? O que essa escolha de objeto amoroso diz da
imagem que ela tem de si mesma?
Será que voltaria a encontrá-la de novo? Conseguirá
virar essa página e se interessar por alguém que realmente a deseje e ame?
Adoraria tomá-la em análise, saber mais sobre seu
psiquismo, seus modos de gozar, amar, desejar e deliberar.
Assim como os livros, o desejo do analista não sai de
mim.
William Amorim é psicanalista, poeta
e idealizador do Café Freudiano-São Luís
Queria saber o desfecho...kkk
ResponderExcluirKkkk um convite à imaginação kkk
ExcluirGostei da tua crônica, porque a crônica é essa captação do cotidiano. E isso fizeste com maestria . Interessante!!
ResponderExcluirObrigado! Bom domingo!
ExcluirEsse comentário acima é meu: Wanda Cunha. Gostei de sua abordagem do cotidiano. Parabéns
ResponderExcluirUm texto que capta a nossa atenção e curiosidade. Maravilhoso.
ResponderExcluirObrigado, Kamila !
ExcluirA escuta está em todas as partes o que implica nas angustias pelas quais muitos hoje estão sofrendo
ResponderExcluirA escuta é o dispositivo do analista onde quer que vá .
ExcluirBem isso : o desejo de analista insiste.
ResponderExcluirNão tem nada mais bonito que o ineditismo do cotidiano. Ótimo texto!
ResponderExcluirCrônica excelente ! O cotidiano nos ensina muito .
ResponderExcluirFiquei com o gosto doce da curiosidade de saber mais sobre ela. Amei!
ResponderExcluirA escuta está em todas as partes! Que texto maravilhoso e simples do cotidiano! Agora a curiosidade pra saber mais… e torcer pra que “ela” se escute tb!!!
ResponderExcluirIsso é que é escuta flutuante! :)
ResponderExcluirOtimo texto!
ResponderExcluirA crônica de William Amorim é um retrato sensível e inteligente do cotidiano, que transforma uma simples ida ao supermercado em uma rica janela para o inconsciente humano. Com olhar de analista e alma de poeta, ele capta a dor, as contradições e o desejo que atravessam uma história comum, mas profundamente humana. A leveza da narrativa, misturada à curiosidade inevitável de quem escuta mais do que lê, nos envolve e nos faz querer saber mais — não apenas sobre a personagem, mas sobre as escolhas inconscientes que moldam tantas vidas silenciosamente. Uma bela homenagem à arte da escuta e à complexidade do desejo.
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