VOZES DO SILÊNCIO                             

 O ônibus atropelou Gabriel. Seu corpo inerte já estava coberto quando eu cheguei. Eu estava desolada. Ele não ouviu a buzina nem o barulho dos pneus do carro no asfalto. Se Gabriel tivesse ficado comigo em casa como tanto insisti, em vez de sair pra casa de um amigo, ele não teria morrido. Foi tudo tão rápido. Eu acabara de dizer: fica comigo, vamos jogar dominó! (Ele gostava de jogar dominó). Mas ele estava com pressa pra sair. Parecia que tinha marcado um encontro com a morte. Depois do enterro, voltei à nossa casa. O cachorro dele também chorava no quintal. Parecia saber o que estava acontecendo. Ele rosnava de uma tal forma, chorando a saudade de seu dono, que parecia falar. Eu não consegui dormir naquela noite. Foi assim mesmo quando mamãe morreu: Gabriel soluçou durante toda a noite. Um soluço estridente, como se emitisse várias vozes saídas do seu silêncio triste carregado de orfandade. Também foi impossível dormir naquela noite. Foi o soluço mais triste que já ouvi em toda a minha existência.

Gabriel chegou em minha vida como chegam os anjos, iluminando tudo. Ele tinha sete anos, mas aparentava três. Desnutrido. Não andava, não falava, e seu olhar era uma lâmina que invadia a minha alma. Papai costumava dizer que o olhar de Gabriel parecia um fim de tarde. Mamãe foi mais taxativa. Para ela, o olhar de Gabriel era triste. Eu tinha dezesseis anos, filha única. Tudo que eu queria era uma companhia. Aquele irmãozinho chegou pra mudar a minha vida. Fui eu quem o descobriu na casa de meus avós paternos, aonde ele havia chegado uma semana antes. Ele morava com a mãe, uma mulher solteira que ia dar o filho a um casal cearense. Alegava não poder criá-lo. Papai, quando soube que a ex-amante iria entregar seu filho para estranhos, pediu ajuda a seus pais. Meus avós no começo não aceitaram a ideia. Gostavam muito de minha mãe e não queriam magoá-la. Ela não merecia aquela traição. Mas meus avós, quando viram aquele novo neto... Tão pequenino, tão indefeso... Resolveram ficar com o menino. Assim que cheguei à casa de meus avós e que olhei aquela criança pálida e esquelética, senti que havia entre mim e ela uma conexão. Perguntei a minha avó quem era o menino. Ela titubeou, disse que era de uma ex-empregada que não podia criar, sem condições financeiras. Não engoli aquela história de que meus avós iriam adotá-lo. Aquele menino me lembrava alguém. Seu rosto era familiar. Fui ao quarto da vovó. O álbum de fotografia... lá estava a foto do papai quando criança. Era a cara do Gabriel. Cheguei em casa pensativa. Minha mãe notou meu silencio. Resolvi colocar as cartas na mesa. Papai ainda tentou negar. Foi um Deus nos acuda!...

Mas minha mãe era a pessoa mais humana que já conheci. Na semana seguinte, ela quis olhar Gabriel. O encontro dela com ele foi mais comovente do que o meu com ele: foi amor à primeira vista. Depois daquele dia, Gabriel não voltou a morar na casa de meus avós. Ficou em nossa casa. Mamãe o levou ao médico, comprou roupas novas, brinquedos. Minha mãe não só descobriu que Gabriel tinha os olhos tristes, como descobriu que ele tinha 90% de surdez do lado direito e 70% no ouvido esquerdo. Teria que usar aparelho. A mãe genética dele tomara tanto remédio pra abortar que Gabriel nasceu com sequelas na audição. Sua surdez era irreparável. Mas minha mãe não desistiu da ideia de amenizar seus silêncios e comprou o aparelho sob prescrição médica. E foi assim que Gabriel entrou em nossas vidas. Passado um pequeno espaço de tempo, mamãe também o registrou como seu filho. Foi quando ele começou a balbuciar pequenas palavras, dentre as quais mamãe. Paulatinamente Gabriel foi construindo suas vozes naquele labirinto de poucos decibéis. Sua voz de criança foi cedendo espaço pra sua voz de adolescente, sua voz de adolescente para sua voz de adulto, mas sempre vozes arrastadas que não conseguiam acompanhar a velocidade de seus sentimentos e de suas ideias. Eu sabia que ele me amava muito, mas era um amor indizível. Depois que Gabriel entrara em minha vida, eu nunca mais fui só e nunca mais fui triste. Mesmo quando meus pais morreram, eu tinha um motivo pra viver: eu cuidava dele e ele cuidava de mim. E agora eu tinha voltado a ser só. Minto! Havia o cachorro dele no quintal. Mas com o passar dos dias o cachorro também foi definhando de tristeza. Eu não era veterinária, mas pude atestar o óbito do cachorro: ele morreu de saudade. E eu? Eu fiquei no necrotério de minha vida, ouvindo as vozes do silêncio que me restaram, esperando o reconhecimento da morte para eu também poder ser enterrada.

                         

Wanda Cunha é poeta e presidente

da Academia Maranhense de Trovas

Comentários

  1. Há toque de espiritualidade literária no texto de Wanda Cristina, uma escritora pronta, preparada e que deveria estar nas vitrines literárias do Brasil e do mundo. Texto leve e muito agradável. Parabéns à autora.

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    1. A apreciação de um escritor e editor da estirpe de Battista Soarez estimula e engrandece o meu amor pelas letras.

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  2. Colocar poesia nas palavras, transforma-las em algo que prende a atenção e transforma a leitura em prazer, é algo que só é dado a pessoas "leves" , que transportam a alma ao descrever fatos, sentimentos, beleza. E até os momentos nem tão felizes, quando descritos por Wanda Cunha, ganham "um quê de especial" que nos prendem em sua leitura. É sempre assim comigo. Leio-os de um fôlego só.

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    1. Obrigada! Belo comentário. Pena que fiquei sem saber o autor de tão gentis considerações. Wanda Cunha

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    2. Fiquei tão empolgada quenesqueci de assinar!!!

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    3. Fiquei tão empolgada que esqueci de assinar.

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    4. Obrigada, querida Elistia! Amei@.... Wanda Cunha

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  3. Belo texto, Wanda! A adaptação da trágica história de Jean casou bem com o tema do texto. Uma narrativa rememorativa e dolorida. Um final magistral, próprio dos bons contos e daqueles de sua lavra. Parabéns!!
    Adorei a frase "Paulatinamente Gabriel foi construindo suas vozes naquele labirinto de poucos decibéis." e "Eu fiquei no necrotério de minha vida, ouvindo as vozes do silêncio que me restara, esperando o reconhecimento da morte para eu poder ser enterrada."

    Nicolau Fahd

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    1. Nicolas, você é meu irmão especial das letras, um leitor em quem confio até os meus textos impublicáveis.

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  4. Que texto comovente! Me emocionou esse conto que parece tão real. Já visualiso o rosto do Gabriel e a cara de seu cachorro. Wanda aplausos por conseguires nos presentear com essa obra literária. Parabéns!

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  5. Wanda Cunha é uma escritora de muita versatilidade. Excelente trovadora, romancista, cronista , poetisa e uma maravilhosa contista. Além- claro - de uma mãe M A R A V I L H O S A! Wanessa Cunha

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  6. Quanta poesia nas vozes do silêncio de Wanda. Uma escritora madura e que a cada texto nos brinda com leveza e beleza. Parabéns!

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Quando a arte imita a vida. Lembrei de Jean. Parabéns, tia! Você é uma escritora sensacional de sensibilidade única!🙂👏🏻

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