VOZES DO SILÊNCIO
Gabriel chegou em
minha vida como chegam os anjos, iluminando tudo. Ele tinha sete
anos, mas aparentava três. Desnutrido. Não andava, não falava, e seu olhar era
uma lâmina que invadia a minha alma. Papai costumava dizer que o olhar de
Gabriel parecia um fim de tarde. Mamãe foi mais taxativa. Para ela, o olhar de
Gabriel era triste. Eu tinha dezesseis anos, filha única. Tudo que eu queria
era uma companhia. Aquele irmãozinho chegou pra mudar a minha vida. Fui eu quem
o descobriu na casa de meus
avós paternos, aonde ele havia chegado uma semana antes. Ele morava com a mãe, uma mulher
solteira que ia dar o filho a um casal cearense. Alegava não poder criá-lo. Papai, quando soube que a ex-amante iria entregar seu filho para estranhos, pediu ajuda a seus pais. Meus
avós no começo não aceitaram a ideia. Gostavam muito de minha mãe e não queriam
magoá-la. Ela não merecia aquela traição. Mas meus avós, quando viram
aquele novo neto... Tão pequenino, tão indefeso... Resolveram ficar com o menino. Assim que cheguei à casa de meus avós
e que olhei aquela criança pálida e esquelética, senti que havia entre mim e
ela uma conexão. Perguntei a minha
avó quem era o menino. Ela titubeou, disse que era de uma ex-empregada que
não podia criar, sem condições financeiras. Não engoli aquela história de que meus avós iriam adotá-lo. Aquele menino me
lembrava alguém. Seu rosto era familiar. Fui ao quarto da vovó. O álbum de
fotografia... lá estava a foto do papai quando criança. Era a cara do Gabriel. Cheguei em casa
pensativa. Minha mãe notou meu silencio. Resolvi colocar as cartas na mesa. Papai ainda tentou negar. Foi um
Deus nos acuda!...
Mas minha mãe era a
pessoa mais humana que já conheci. Na semana seguinte, ela quis olhar Gabriel. O encontro dela com ele foi mais comovente do que o meu com ele:
foi amor à primeira vista. Depois daquele dia, Gabriel não voltou a morar na casa de meus avós. Ficou em nossa
casa. Mamãe o levou ao médico, comprou roupas novas, brinquedos. Minha mãe não só descobriu que Gabriel tinha os olhos
tristes, como descobriu que ele tinha 90% de surdez do lado direito e 70% no
ouvido esquerdo. Teria que usar aparelho. A mãe genética dele tomara tanto
remédio pra abortar que Gabriel nasceu com sequelas na audição. Sua surdez era irreparável. Mas minha mãe não desistiu da
ideia de amenizar seus silêncios e comprou o
aparelho sob prescrição médica. E foi assim que Gabriel entrou em nossas vidas.
Passado um pequeno espaço de tempo, mamãe também o registrou como seu filho. Foi quando ele começou a balbuciar
pequenas palavras, dentre as quais “mamãe”. Paulatinamente
Gabriel foi construindo suas vozes naquele labirinto de poucos decibéis. Sua
voz de criança foi cedendo espaço pra sua voz de adolescente, sua voz de
adolescente para sua voz de adulto, mas sempre vozes arrastadas que não
conseguiam acompanhar a velocidade de seus sentimentos e de suas ideias. Eu
sabia que ele me amava muito, mas era um amor indizível. Depois que Gabriel
entrara em minha vida, eu nunca mais fui só e nunca mais fui triste. Mesmo
quando meus pais morreram, eu tinha um motivo pra viver: eu cuidava dele e ele
cuidava de mim. E agora eu tinha voltado a ser só. Minto! Havia o cachorro dele
no quintal. Mas com o passar dos dias o cachorro também foi definhando de
tristeza. Eu não era veterinária, mas pude atestar o óbito do cachorro: ele morreu de saudade. E eu? Eu fiquei no necrotério de minha vida,
ouvindo as vozes do silêncio que me
restaram, esperando o reconhecimento da morte para eu também poder ser
enterrada.
Wanda Cunha é poeta e presidente
da Academia Maranhense de Trovas
Há toque de espiritualidade literária no texto de Wanda Cristina, uma escritora pronta, preparada e que deveria estar nas vitrines literárias do Brasil e do mundo. Texto leve e muito agradável. Parabéns à autora.
ResponderExcluirA apreciação de um escritor e editor da estirpe de Battista Soarez estimula e engrandece o meu amor pelas letras.
ExcluirColocar poesia nas palavras, transforma-las em algo que prende a atenção e transforma a leitura em prazer, é algo que só é dado a pessoas "leves" , que transportam a alma ao descrever fatos, sentimentos, beleza. E até os momentos nem tão felizes, quando descritos por Wanda Cunha, ganham "um quê de especial" que nos prendem em sua leitura. É sempre assim comigo. Leio-os de um fôlego só.
ResponderExcluirObrigada! Belo comentário. Pena que fiquei sem saber o autor de tão gentis considerações. Wanda Cunha
ExcluirFiquei tão empolgada quenesqueci de assinar!!!
ExcluirFiquei tão empolgada que esqueci de assinar.
ExcluirObrigada, querida Elistia! Amei@.... Wanda Cunha
ExcluirBelo texto, Wanda! A adaptação da trágica história de Jean casou bem com o tema do texto. Uma narrativa rememorativa e dolorida. Um final magistral, próprio dos bons contos e daqueles de sua lavra. Parabéns!!
ResponderExcluirAdorei a frase "Paulatinamente Gabriel foi construindo suas vozes naquele labirinto de poucos decibéis." e "Eu fiquei no necrotério de minha vida, ouvindo as vozes do silêncio que me restara, esperando o reconhecimento da morte para eu poder ser enterrada."
Nicolau Fahd
Nicolas, você é meu irmão especial das letras, um leitor em quem confio até os meus textos impublicáveis.
ExcluirQue texto comovente! Me emocionou esse conto que parece tão real. Já visualiso o rosto do Gabriel e a cara de seu cachorro. Wanda aplausos por conseguires nos presentear com essa obra literária. Parabéns!
ResponderExcluirWanda Cunha é uma escritora de muita versatilidade. Excelente trovadora, romancista, cronista , poetisa e uma maravilhosa contista. Além- claro - de uma mãe M A R A V I L H O S A! Wanessa Cunha
ResponderExcluirQuanta poesia nas vozes do silêncio de Wanda. Uma escritora madura e que a cada texto nos brinda com leveza e beleza. Parabéns!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirQuando a arte imita a vida. Lembrei de Jean. Parabéns, tia! Você é uma escritora sensacional de sensibilidade única!🙂👏🏻