MUDANÇA DE VIDA

 

Viviam todos na mesma faixa etária e moravam em um condomínio de classe média, num subúrbio tranquilo da cidade. Certo dia, chegou um novo morador: Eduardo. Logo se percebeu que ele era diferente. Vestia-se com elegância, andava com discrição e brincava de forma incomum. Tinha cerca de 12 anos e era filho de uma professora e de um ex-gerente de banco.

Seu pai, após ser demitido com um bom pacote de indenização, resolveu investir o dinheiro em um restaurante — uma ideia que unia seu lado gestor e o prazer que tinha em cozinhar nos fins de semana. No entanto, o país vivia um momento de instabilidade econômica, e o negócio logo mergulhou em uma sequência de crises. Veio a falência. Endividado, teve que vender a casa num bairro nobre e mudar-se com a família para um modesto apartamento em um condomínio de classe média. O carro novo foi vendido para pagar parte das dívidas, inclusive as taxas de condomínio da antiga moradia. O sonho de se tornar um empresário de sucesso ruiu e, com ele, desceu também o padrão de vida da família.

A renda restante mal cobria o básico: aluguel, condomínio e alimentação. Dependiam do pouco que sobrou da venda dos bens e do salário da esposa, que, por intermédio de uma amiga dos tempos de banco, conseguiu um emprego na Secretaria de Estado. O senhor Albuquerque, o pai, mergulhou em depressão. Sentia-se responsável pela decadência da família. Ainda assim, mantinha a arrogância, tentando sustentar a aparência de uma classe que já não lhes pertencia. Quem mais sofria era Eduardo. Para os pais, mesmo vivendo agora no subúrbio, ele não deveria se misturar com os meninos dali. “Meu filho não vai se misturar”, diziam com veemência.

Eduardo era reprimido em quase tudo. Durante a semana, era só estudo. Nada de televisão. Assim que terminava as tarefas escolares, ia dormir cedo para acordar e pegar o "busão" rumo à escola — um costume novo para ele. Nos fins de semana, enquanto os meninos do condomínio jogavam bola, empinavam papagaio, andavam de carrinho de rolimã e riam despreocupados, Eduardo observava tudo da janela do apartamento. Era proibido de participar. Seus pais queriam uma formação refinada: filmes, piano (substituído por um teclado usado), inglês, xadrez. Tudo, menos a rua. A ideia era fazer dele um profissional bem-sucedido, alguém capaz de redimir o fracasso do pai.

Com a ajuda da tia-madrinha, que bancava a mensalidade, Eduardo seguiu estudando no mesmo colégio de elite. Era um aluno exemplar: dedicado, disciplinado, notas sempre altas. Mas era também um jovem sem infância. Não viveu os tombos, os rasgos nas roupas, as brigas e reconciliações típicas da idade. Nunca frequentou festas, aniversários ou os rituais simples da convivência com amigos.

Na adolescência, começaram a surgir as inquietações. Ele continuava indo de ônibus para o colégio, enquanto os colegas chegavam em carros próprios, alguns já dirigindo. Essa disparidade doía. Sentia-se deslocado e questionava os pais constantemente. Na escola, havia os estudiosos e os que estavam ali por obrigação. Eduardo, uma exceção, viu nisso uma oportunidade. Decidiu ajudar os colegas com dificuldades, o que lhe rendeu aproximações, especialmente com Flávio — filho de pais influentes, morador de uma mansão, dono de carro e com uma postura que encantava os pais de Eduardo.

Passou a frequentar a casa de Flávio, onde montaram uma “sala de estudos” para preparar os colegas para as provas finais. Eduardo, além de estudar para si, se dedicava a ensinar os outros. Com o tempo curto, acabou se mudando temporariamente para a casa de Flávio. Seus pais ficaram satisfeitos. Acreditavam que a amizade com um garoto de boa família poderia abrir portas para o filho.

Flávio era o típico jovem mimado, cercado de privilégios, com acesso a tudo — inclusive às meninas, algo que Eduardo mal conhecia. Ao final do ano letivo, graças à ajuda de Eduardo, muitos colegas conseguiram aprovação — inclusive Flávio, por um milagre das notas mínimas. Em agradecimento, Flávio fez um convite: levar Eduardo para uma noitada, sua primeira balada.

Após muita insistência e o aval dos pais, Eduardo aceitou. Era seu “début” no mundo noturno. Começaram em um bar, onde Eduardo se manteve no suco, mesmo com o incentivo do amigo para beber algo mais forte. Depois, seguiram para a boate. Música alta, luzes piscando, mulheres lindas. O ambiente o fascinou e o assustou ao mesmo tempo. Subiram para o camarote, onde tinham uma vista privilegiada da festa. Aos poucos, Eduardo foi se soltando. Começou a misturar vodca no suco, sentiu-se mais corajoso. Pulava, dançava, sorria. Logo estava com uma bela garota ao seu lado. A madrugada avançava, e Eduardo parecia outro.

Ao sair da boate, alguém sugeriu um sanduíche. Riram, comeram e combinaram outra saída no dia seguinte. Mas o corpo cobra, e a exaustão veio. No caminho de volta, Flávio, cansado e imprudente, fez uma curva fechada. O carro derrapou e capotou. Nenhum dos dois usava cinto de segurança. Ambos morreram no local.

A notícia chegou de forma brutal. Familiares de Flávio foram até o condomínio e, ao baterem à porta, foram recebidos pela mãe de Eduardo. Chamou o marido. Sentaram-se. Ouviram. Um silêncio imenso se instalou. A vida inteira passou diante dos olhos: vitórias, fracassos, esperanças. O pai de Eduardo, já fragilizado, não suportou. Sofreu um infarto e faleceu no mesmo dia, levando consigo a dor e o arrependimento.

Os anos passaram. Da janela do pequeno apartamento, a mãe de Eduardo, dona Cláudia, observava os vizinhos que um dia foram proibidos de brincar com seu filho. Via agora os mesmos meninos, já adultos, saindo para a universidade, cada um seguindo seu caminho. Sentia, diariamente, a dor da perda e a culpa por não ter permitido ao filho uma infância comum. Perguntava-se, em silêncio:

E se tivéssemos deixado o Eduardo viver como os outros? Se ele tivesse brincado, caído, rido, vivido... será que hoje estaria partindo com os amigos para um futuro real?

Uma pergunta sem resposta. E um vazio eterno no coração de uma mãe.

 


Roberto Franklin é poeta, escritor e membro

da Academia Ludovicense de Letras 

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