10 poemas de Bioque Mesito

MÍNIMO MÁQUINA*


                                             a Hagamenon de Jesus

 

uma pessoa que escreve poesia

não é nenhum pouco diferente

de uma costureira de franzidos

de um instalador de antenas

 

não difere em nada

de um ostreiro de um pirata

que rouba barcos fundeados

na baía de são marcos

 

não é nada distante

de copeiros de fast-foods

de acionistas de fundos

de investimentos

 

pelo contrário

um sujeito como os outros

que desliza seus olhos

pelas cidades de si mesmo

 

uma pessoa que escreve poesia

de maneira alguma é diferente

a não ser por levar humanidades

dentro do seu hábito de caminhar


 

INTERVALOS BURLESCOS*

 

1

ele brinca atirando pedras no rio

enquanto o pai se distrai

 

com uma mossberg 500

caçando patos selvagens

 

 2

a irmã sem o que fazer

ouve imagine dragons

 

entre gibis baratos

pede proteção a belzebu

 

 3

a mãe com a boca

entupida de cannabis

 

descarta bitucas

no vaso sanitário

 

4

o namorado da irmã

bate na janela do quarto

 

entre uma transa e outra

faz boquetes inesquecíveis

 

5

o pai chega com o filho

coloca a arma sobre a mesa

 

bate na porta do quarto

da filha sem dizer nada

 

6

o namorado não espera

pula do terceiro andar

 

a mãe morre

de rir com a cena



CAMPANÁRIO*

 

acordo com os beijos de minha mulher

sobre meu peito pedindo indelicadezas

a página cinquenta e cinco de kenzaburo oe

trespassa minha alucinação neste instante-pássaro

 

o dia começa pela bunda dela despida

que me sugere continuarmos na cama

até mais tarde

 

no youtube charlie parker

adoça meu café entre as pernas dela

a manhã oscila com seu carrossel de significados

 

é mesmo assim basta um beijo

para nosso dia ser uma estrela

uma sinfonia ou mesmo encantaria

 

são flashes de que estamos vivos

que as coisas se encaminham

para o lado condizente da vida

 

quando vejo meus livros amontoados

a existência se torna um pouco melhor

rodopio entre a sala e o quarto

esse cotidiano de carinho     


 

MOVEDIÇO*

 

o amor caminhou

com suas rodas de sangue

sem nenhum de nós por perto

 

o mundo desconexo

nos deu a dor

 

por cima dos olhares

sobre os braços cobertos

de espelhos


 

DIAS DE ONTEM*

  

minha avó tinha razão

as calças rasgadas do meu pai

eram as mais bonitas

 

não havia ainda indecisões

contas a pagar seios desnorteadores

batendo à minha porta

 

as noites passadas

com amigos tão marcantes

pela poeira que ficou

 

o amor é deslimite

deixa ranhuras

na pele da gente



ESTUÁRIO**


poesia

uma insatisfação


pausa que pulsa por detrás

do mundo lâmina de alta precisão


contraventora de palavras

fuga da minha imaginação


destino que me alucina

rupestre inscrição


incêndio controlado

em minhas mãos



A MESMA QUÍMICA**


                            a Nara Ferreira


ao caminhar sozinho

aprendi que o amor

é uma simbiose de bocas


o que amamos gruda em nós


felicidade me parece

uma revoada de interrogações


lembro que saudade

não é uma escolha


abre fronteiras em meus amanhãs


meu destino

é beijar as flores

da planta de teus pés



LEITO QUATRO**


se vai mais um dia entre muitos que pensei viver melhor olhares como

se esperança fosse um entulho de lamentações acelera meus pulmões

ginsberg tece comentários entre a luva indesejada e o prato de comida

que chega como hospitalidade aquele antro de desespero e chagas

destila em meu caos inconformidades com o divino que insiste em me

reter sem qualquer motivo na verdade queria estar em um aeroplano

sobrevoando as praias de humberto de campos ou conversando com

uns amigos na porta do bar do adalberto


às vezes yeats faz me lembrar da samsara que é um copo de leite gelado

após a bebedeira flanando pela avenida melo e povoas agarrado nas

arrepiadas ancas de uma morena observo o marasmo da calcinha

da mulher que ri ao lado naquele bar entre estrelas descontinuadas

todos os meus provérbios de existir me negam tropeço mais uma vez

na mesmice de acreditar em corações complacentes hainoã quando

me chama de pai caem meus hemisférios sobre a baía de são marcos

há felicidade entre o roer de unhas e a dor da cutícula


na rua do giz minha vertebral luz minha jerusalém estoica meu

gozo sobre o colo de prostitutas noites que como beatnik caminhava

desolado em busca de algo mais que pudesse estancar as interferências

prejudiciais dos versos inacessíveis anti-herói soprava a dualidade

dos anos oitenta/noventa com barba rala & jaqueta desbotada

transpirando revoluta paixão um ser barroco à procura dos

espelhos perdidos com a obscura missão de continuar em precipícios

acreditando que há um verão orgástico no caminho do poeta


a verdade da vida era para ser escrita em forma de poesia pouparia

do desgaste secular de acreditar em são tomás de aquino o amor

só vale a pena se não exigir tíquetes de estacionamento bandeira

da mastercard crediário nas lojas de departamento da magalhães

de almeida agora recluso entre gotas interestelares seringas peidos

fortuitos e azedos o deserto de barreirinhas é o arpoador das minhas

abstrações bundinhas tesas adornadas de branco tangenciam minha

libido meu cacete endurece entre uma e outra troca de antibióticos


o céu mais azul que já havia visto se instala em meu coração do olho

d’água à ponta do farol iemanjá me guia com suas ondas caudalosas

o espírito de meu avô parece dançar entre as pedras de arrebentação

da ponta da areia batuques inebriantes cadenciam aquela noite

enquanto os trinta e nove e meio graus me jogam de um lado para

outro iniciado em rotinas e fast-foods inconformismos parecem me

tragar para o boqueirão se pudesse acenderia velas para os ancestrais

bashô está comigo é o que me deixa calmo pelo menos dessa vez


reviro-me para tentar apaziguar o cansaço do trópico de capricórnio

que há em minhas costas as mulheres da antiga sunset rasgam meus

olhos pela madrugada naquele equinócio de desesperança onde líamos

camus pessoa gullar chopes ecoavam no saloon pronto a explodir a

nudez de uma amistosa moça nem todos se sentiam na primeira fila

do carnegie hall o cobertor florido aquece meus ossos embargados

por um dia quase todo de febre e delírios ao lado da cama minha

mulher ronca baixinho como um poema arisco de alice ruiz


rabolú encontrou as engrenagens simbióticas de jesus maomé

quetzacoaltl pelas ruas desfilou em seu fleetmaster conversível muito

embora a discoteca fosse o religare preterido chove sobre os telhados

do turu e não sinto nada estou vazio como um biscoito ensopado

de café frio aproveito para conferir intempéries não aguento mais

ficar imóvel sobre a esquálida cama apesar de muitos livros ao meu

redor nenhum tem a atmosfera lúdica de peshkov se eu fosse líquido

precipitaria sobre os túmulos carcomidos do cemitério do gavião


queria caminhar pela rua portugal destilar imoralidades com sotero

vital ou ouvir o guriatã cantar que a coroa está no maracanã meu

alento são alguns metros quadrados e a memória profícua e desolada

a contemplar a kalevala entre uvas tangerinas e sorrisos de minha

mãe a conversar há uma catarse de choros e ainda não é sexta-feira

nos corações das pessoas nem mesmo o extremismo fático dos grupos

muçulmanos a cortar gargantas pelo iêmen calará os preciosos traços

dos redatores da charlie hebdo


meus cabelos parecem a décima quinta de shostakovich a antissepsia é

tão complexa quanto as linhas de nazca mamãe me dá uma ajudazinha

e me enche de sândalo barato ouço no rádio que o país não é mais o

mesmo crise à vista salários minguados violência se instalando dentro

das casas a oligarquia baixando a guarda no maranhão o mundo é

uma sobra de falências múltiplas enquanto uma criança vietnamita

chora a perda de seu cão assado em um mercado público a standard

& poor’s rebaixa a nota de investimentos no brasil



BIOQUE MESITO’S SERIES**

 

aos poetas couto corrêa filho,

sotero vital e sebastião ribeiro

 

 0 - 22

no abandono do sangue

o útero árido de fome

na cantilena sem paz

geme o corpo da mulher

 

1

a vida é troca

moeda inútil

câmbio do destino

 

2

eu resumiria nosso romance em poucas linhas

uma borboleta solta do casulo em órbita da lua

 

3

amigos são psicólogos que sonham

 

4

o sonho ignora o crepúsculo

neve e flor em música

os dias que partem

 

5

enquanto a fé não migra

o coração acredita

em migalhas

 

6

ao mais incrédulo homem

o tempo lhe concebe

uma cruz em seu nome

 

7

dentro de cada um

deve sorrir um demônio

à procura de espelhos

 

8

se despia do corpo em carnívoros desejos

na cama sombras projetavam precipícios

orgasmos ao som das molas do colchão

 

9

não quero rimar xoxota

com chocolate alienar-me

entre pulos e grunhidos

 

10

estrelas em pares

na solidão da noite

sentem-se ímpares

 

11

as ancas de uma mulher

me fazem dormir melhor

numa noite de chuva

 

12

enquanto bambus boiam

um homem desce o rio

a vida segue o sol


13

aos que não se deram

bem no inverno da cama

um minuto de silêncio

 

14

nos olhos dos meus filhos

poesias cores músicas

a singularidade do caminhar

 

15

a gente ama quando não se é capaz

de ignorar o café da manhã a novela

o sorriso pelo retrovisor dizendo volta

 

16

de fato fadas

não fodem com príncipes

encantados

 

17

o nobel ainda

não inventou

o prêmio vilão

 

18

poemas nos ensinam

o não mensurado

alguns censuram-nos

outros como um tango

 

19

sentimentos nas nuvens

entre tuas trilhas poeta

cabedal de musas

 

20

deus é azul

a vida não é

 

21

toda poesia é um não pensamento



CONCERTO PARA SÃO LUÍS


existe uma cidade para além do palácio dos leões


menos importante e sedutora quanto a dos telhados de chagas ou

mesmo dos poemas de nauro gullar & de tantos outros que por aqui

insistem em nascer e viver


cresce uma cidade sem a fonte do ribeirão


talvez aílton ou mesmo rosemary olhem nesse lugar o paradoxo mais

próximo de sua verdade uma cidade que passou e que agora caminha

lentamente para o pôr do sol definitivo na beira-mar


há uma praça totalmente diferente da joão lisboa


as tardes são agora cocô de passarinho e os velhinhos se encolhem

entre os bancos tentando puxar à força o destino passado que os fez

tão felizes mas a felicidade não está mais lá


a felicidade só se encontrará em livros de gentil braga de morano

portela de alberico carneiro de arlete nogueira ou nas composições

de carvalho junior


os cabarés imponentes da antiga cidade não existem mais

lá o tempo caminhava rouco entre as pernas das belas morenas

suadas do baixo meretrício suas vestes seus perfumes seus cancros


suas gonorreias seus beijos tão pouco ameaçadores seus gozos que

varavam a noite descreveram uma cidade que não mais reviverá


nos antros existiam meninos soltos empinando seus papagaios amarelos


há uma ponta da areia de esgotos predestinada à falência de sua

diversidade de prédios uma holandesa invenção de arquitetos sem

visão suas sinuosas avenidas não são mais do que loucura emergente

de um novo invasor sórdido suas praias tão bombardeadas por

dejetos derramados dos arranha-céus do calhau ao araçagi


há uma outra cidade para além do palácio dos leões


suas construções que desafiam o olhar vertical não são tão belas

quantos os poemas de j. ewerton neto seus engarrafamentos não

tão belos quantos os versos de hagamenon de jesus suas praças de

alimentação não são tão sofisticadas quantos as invenções de sotero

vital seus condomínios fechados não tão belos quanto o condomínio

sophia de luís augusto cassas


existe uma nova cidade surgindo entre as planícies modernas do turu/cohama


tão necessária quanto extravagante desplanejada extremamente

desumana em seus traçados de negócios ignora olhos d’águas

buritizais mangues pássaros bichos e pessoas esta cidade que aí está

é tão ameaçadora quanto as bombas e/ou mísseis nucleares existentes


há uma cidade para além dos nossos olhos que se alimenta do suor

alheio infelizmente este não é o exemplo que deveríamos deixar


a cidade que herdamos talvez não transpire mais poesia


*Poemas do livro Odisseia do nada registrado (Editora Penalux-SP, 2020).

**Poemas do livro A desordem das coisas naturais (Editora Penalux-SP, 2018).



Bioque Mesito é nascido sob o sol de aquário em 3 de fevereiro de 1972. Possui vários prêmios em concursos de poesia em âmbito local, regional e nacional. É autor dos livros de poesia A inconstante órbita dos extremos (Editora Cone Sul-SP, 2001); A anticópia dos placebos existenciais (Edfunc-MA, 2008); A desordem das coisas naturais (Editora Penalux-SP, 2018) e Odisseia do nada registrado (Editora Penalux-SP, 2020).


Comentários

  1. Gosto muito deste poeta. Seco e estimulante, poético.

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  2. Obrigado. Tento fazer uma poesia com simplicidade e observando o humano como base.

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  3. É compadre. Escrever poesia não é brinquedo não. Mas nós delicia o humano. E é convite pra mais. Continua firme, poeta!

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  4. *nos delicia (caralho desse editor escrevendo por nós)

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