Conversas vadias
CANTIGAS
DE ONTEM E SEMPRE...*
Recebi
há poucos dias pelos correios [lê-se: agosto de 2018] ‘Canções de Roda nos pés
da noite’, que é na ordem cronológica de publicações, o 44º livro de Nauro
Machado e ‘Colheitas’, de Arlete Nogueira da Cruza; o primeiro, Nauro, nos
estertores da morte, pedira à Arlete, sua mulher, que o fizesses de logo
publicar dentre seus trabalhos inéditos, vez que este livro é dedicado às netas
Luísa e Júlia, filhas do cineasta Frederico Machado, filho único e herdeiro da
eugenia brilhante do casal.
O
outro exemplar, ‘Colheitas’, é uma antologia poética de Arlete Nogueira da
Cruz, a enfeixar poemas de ‘Canções das horas úmidas’, 1973; ‘Litania da
velha’, 1996/7 e ‘O quintal’, 2013/14.
Essas
duas lembranças vieram acompanhadas de um terno e generoso bilhete de Arlete, a
falar da dimensão do tempo que a assoberba de afazeres, bem como da nossa
tríade saudosa, querida e fraterna... Juro que meus velhos e míopes olhos
lacrimejaram... Realmente, o tempo é implacável!
I
N’O
quintal dos Prazeres’, que se mais parece com um título dalgum romance português
encenado no verdejar de Trás-os-Montes, mas que na verdade são as águas-furtadas
da antiga morada do poeta, onde se ergue hoje a ‘Casa de Cultura Nauro
Machado’, ele enobrece mais ainda aquele seu recanto neste canto: “A poesia com
que falo/ pela boca em mim maldita,/ querendo a que canta o galo/ que pela manhã
mais grita,/ a poesia sem a sola/ dos sapatos do poeta,/ é a que leva em sua
sacola/ as cadernetas da neta,/ a cantar pela manhã,/ como quem abre a
janela...”
E
para o ‘Hotel Nazareth’, sobradinho verde, que abrigava nos baixos ‘A Casa
Ribamar’, especialista em instrumentos musicais, e defronte do ‘Atenas bar’,
nosso velho tugúrio alcóolico e poético, Nauro canta em contraponto: “Se tocas
cordas/ cercando lívidos/ pescoços-covas,/ meus vocábulos/ são de enforcados,/
tombando do alto de outros sapatos.” [1]
No
‘Sobrado do Carmo’, solar do clã dos Machado, velho e intransponível quartel
das oposições coligadas do Maranhão e ainda redação de ‘O Combate’, onde nasceu
o poeta e viveu parte de sua vida, seu choro é ecoado pelas centenárias sacadas
a ferro: “Do outro lado só há o nada:/ ninguém te segura os dedos,/ nem mesmo
tua ama, a fada/ que ainda te guarda os segredos...”
E
clama em ‘A idade da pedra’, num laivo quase uterino: “Nenhuma mãe/ me teve
velho;/ vivendo em mim, / sou um homem órfão/ desse menino/ que não morreu.”
E
‘De vidro e treva’, Nauro projeta-se: “Era tu espelhas, filho, / o resto que
era o meu. / Era o espelho de um pai, / a face que era a tua. /Nessa eterna
presença viverá nosso tempo.”
“Aos
pés desse tempo em projeção do qual cada anoitecer precipita tanto nova aurora
quanto o fim a todos comum, encontram-se os polos dos poemas aqui reunidos: o
socorro do verbo a conclusão da matéria humana”, disse nas abas do livro, com
muita propriedade, Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos.
...Quem
viu o rosto de Nauro não morre nunca! Nauro está vivo!
II
Sobre
‘Colheita’, de Arlete Nogueira da Cruz, endosso Assis Brasil quando diz que
“ela atinge o ser da literatura poética, e, por sobre a norma da língua, atinge
a arte da palavra, com seus poemas inefáveis, fiel à tradição da imagem, que
tem marcado a poesia...”
E
Arlete canta à Cidade de São Luís: “Ó cidade de São Luís/estanco nestes
degraus/subindo escadas que fiz/ suando os mais altos graus. / Acolhe esta
andarilha/ subindo no desamor/ das águas que me querem ilha, / de outras que me
trazem dor.”
Ao
alongar a vista desarmada para Itapuitapera [lê-se Alcântara], Arlete acende
uma estrela na tosca luz da aristocrata cidade escondida na linha do horizonte,
a cantar: “Onde o verdugo passou/ e a solidão ainda mora. / Alcântara suportou
sua noite e a sua aurora.” E finaliza: “Na quitanda que não vejo/ para a forme
deste dia, / da criança que eu almejo/ nos paços da burguesia.”
Capas dos
livros ‘Canções de roda no pé da noite’ e ‘Colheitas’, de Nauro Machado e
Arlete Nogueira da Cruz [Machado], respectivamente.
Como
filha querida, volta à prosa, numa bela crônica, e canta sobre o pai em
‘Raimundo, simplesmente Raimundo’, de onde extraí este excerto: “... Era um
homem recatado, contrito, humilde, que rezava o pai-nosso todas as noites com
as limpas mãos cruzadas entre as pernas, e, depois de fazer o sinal da cruz,
deitava e dormia sem remorsos, porque tinha o dever cumprido e a consciência
limpa...”
Arlete
retorna ao verso e diz à sua mãe Enói, com muito amor: “Neste mês de
novembro/encontro a minha lua generosa./ Tu me tens, lua-luar,/ desde quando me
protegias/ nessa tua forma ovular crescente,/ mesmo depois, quando
minguavas,/também hoje em plenitude,/ nesta noite de novembro,/lua-minha que
vai e volta,/ lua cheia, tu me tens...”
E
para Nauro, o velho marido e querido poeta, Arlete, engolindo o soluço e
esboçando um sorriso se esforça para dizer em ‘Relíquia’: “Nuvens avançam sobre
líquidas travessias/ enquanto sólidas lágrimas te guardam/ sob pálpebras
congeladas de assombro”.
E
em ‘Regozijo’: “Ó consumado gesto de uma alma/ que aflorou desperto de seus dedos.
/ Para sempre, sobre a morte, / ele triunfa em tais segredos/ para sempre
ficará em júbilo de versos.”
Que
trajetória ascendente e bem construída foi o caminho literário de Arlete
Nogueira da Cruz, que ainda muito jovem, sob as vistas de uma crítica ferina
encastelada nas muralhas centenárias de São Luís, fez explodir a novela ‘A
Parede’, com uma apresentação emocionada de Josué Montello... Depois a vida em
si... O casamento, uma união do útil com o agradável, a paciência e a
fragilidade de Arlete ante o espírito ambulatório e a genialidade de Nauro
Machado, surgindo os dois de uma mesma lâmpada mágica... Depois Frederico, a
estudar cinema, a dar, assim, um conteúdo acadêmico ao que o pai de há muito já
aprendera na forma poética nas telas do Roxy e do Éden...
Por
fim, o nascimento de Luísa e Júlia, as netas... A litania da velha que é um
livro fantástico... E mais versos, contos, conferências... Entendi Arlete, porque
faltou tempo para te alongares no bilhetinho que me fizeste!
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*Fernando Braga, in Caderno ‘Alternativo
‘, do Jornal Estado do Maranhão, 2 de agosto de 2018, originais in ‘Conversas
Vadias’, antologia de textos do autor.
[1] Neste hotel enforcou-se um hóspede, suicido que, na ocasião, abalou profundamente o poeta Nauro Machado.
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