Textual
O ÚLTIMO CAFÉ DO
POETA
ELE VEIO! Como uma aparição benfazeja, menino
grande, caneludo e magro, envolto em um enorme paletó de outras eras mais
saudáveis, chega o Poeta, amparado pelo irmão e pela sobrinha-filha Deusana. O
momento é de intensa emoção. Sente-se a
ternura no ar. Como se chegasse um artista pop, um astro do futebol. Acho que isso provém da dignidade interna que
emanava de José Chagas. Ele não é só um grande escritor, o poeta de São Luís, o
cronista perfeito, o palavrador por excelência, mas um homem correto e digno,
puro e bom. Uma rara combinação de genialidade e grandeza de alma, que nos faz
dizer que ele é único. Logo, ele é
cercado pelos amigos, beijado e acarinhado pelas mulheres. Vou recebê-lo e
também acarinhá-lo. Ele veio! É mais, muito mais, do que eu podia esperar.
Foi, em 26 de
abril de 2011, no Café Literário do Odylo em homenagem a José Chagas.. Durante
a tarde, caíra uma chuva tal as dos antigos verões chuvosos da minha infância,
quando se dizia: “abril, chuvas mil”. O Café do Poeta, longamente acalentado
por mim, à espera de um momento melhor na saúde do querido José Francisco das
Chagas, saúde frágil, mil vezes fênix, sempre a dar sustos nos seus amigos,
aconteceria, afinal. O temor de não poder homenageá-lo em vida decidiu-me. A
homenagem seria feita mesmo sem a sua presença.
Sempre antes
de todo e qualquer café, dos 31 já
realizados, me punha tensa, tal qual a primeira vez. Marcado para começar às
18:30, momentos antes parara de chover na Praia Grande. Mas a inquietação
tomava conta de mim por inteira – nesta Ilha, a chuva, levada pelo vento, cai por
partes –, onde mais estaria chovendo? O palestrante escolhido, Sebastião
Duarte, chegaria a tempo? E os convidados? Conseguiriam alcançar a Praia Grande, mercê dos
engarrafamentos tenebrosos que se formam a cada temporal?
Súbito, as pessoas
começam a chegar, amigos de Chagas, amigos à mancheia! A chuva não os
intimidou. Acomodamos o Poeta no pequeno palco, em uma poltrona, lado a lado
com o conferencista que nos vai falar a respeito do homem e do poeta. Sebastião
discorre sobre a infância de Chagas em Aroeiras, município de Piancó, na
Paraíba, desenha o percurso da família que aporta em Pedreiras, em 1945, e nos
diz da chegada de José Chagas a São Luís, em 1948, desfiando a sua entrada no mundo
poético e boêmio da Ilha e no mundo dos livros, sempre entremeando os fatos com
o eu lírico do poeta. Passa a analisar, com competência, as suas obras, uma a
uma. O poeta ouve calado. Ao término, agradece as palavras de Sebastião, nega
os elogios, diz que é apenas um versejador e que estava recolhido e que “a Ceres
me tirou do meu recolhimento (culpa) e me trouxe a este ambiente hoje, ambiente
que, de certa maneira, me alegra e me fortifica (alívio e alegria)”.
Pede, então,
para dirigir ao público algumas palavras e, com voz forte e jovem, que
contrasta com a sua figura frágil, profere as palavras inesperadas: “Quase que
nego tudo o que disse na maioria desses poemas [...] “Preocupava-me com a
palavra desde criança, enquanto outras crianças brincavam, eu brincava de
letras. Meu empolgamento com isso era tal que me esqueci que a poesia vem antes
da palavra. Que a poesia precede o poema” [...] “A infância vive a infância.
Todos nós nascemos poéticos. Todos nós fazemos poesia, o que não quer dizer que
façamos poemas”.
Nega também o
valor do poema “A alegria que (se) tem com o mundo, as estrelas, o luar, o pôr
do sol, a namorada, um jogo de futebol, uma praia. Tudo isso é poesia, sem
necessitar de poema”. Nega-se, “não sou um poeta, sou um versejador”. É o
Chagas revoltado com as dores da doença, com “as noites terríveis de insônia,
em que faz poemas mentalmente” e talvez os esqueça pela manhã; lamenta, talvez, a infância sem brincadeiras,
o que perdeu de vida real.
Mas Chagas
não pode se desvestir de poeta. Logo se volta para o sonho: “Filho de lavrador,
de 7 para 8 anos vivia no cabo da enxada, mas já achava que o mundo não era só
aquilo. Sonhava também [...] Muitas vezes plantei o arroz real, mas o arroz do
sonho era o que mais crescia”.
E,
reafirmando-se como ser poético, negando a negação do poema, Chagas pede para
ler as seus últimos poemas!
E assim o
fez, por um bocado de tempo. O poeta estendeu-se por mais de uma hora. Até que,
sentindo-o cansando, com a voz quase inaudível, tentei, mansamente, tirar-lhe o
microfone. Ele me segurou firme a mão e disse ”deixe-me falar um pouco mais,
não sei quando terei outra oportunidade como essa”. Meu coração baqueou. Não
pude contrariá-lo. Depois, ao ver o DVD, ele mesmo ordenou “corta essa parte”.
Disse-me sua
sobrinha, Deusana, que foi essa a sua última fala em público e da felicidade
dele ao fazê-la. Esse foi o mais belo Café Literário dos 32 efetuados: o
público todo composto de amigos de Chagas; as mulheres que se puseram bonitas
para agradá-lo; o belo livro de presença cuidadosamente preparado pelo Foto
Sombra, que todos assinaram; o poema de “Os Canhões do silêncio”, o do pastor
de luas, recitado por Leda Nascimento, sua intérprete maior; os poemas
espontâneos que foram surgindo do público, como os de “Maré Memória”, recitados
por Uimar, por entre as mesas; como o que Joel recitou do alto da escada, e a
emoção que tomou conta de todos...
Chagas, que
bom que pude fazer-te essa homenagem, embora ínfima para o que tu mereces, que bom que o
Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, um dia, pôde te receber em festa,
que bom que te alegraste com isso. Obrigada por
esse inesquecível presente, querido Figura.
Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.
Belíssimo texto, Ceres! Um poeta que embala meus olhos. Chagas vive!
ResponderExcluirExtraordinário. Por maior poeta que seja, que tenha sido, certamente sempre uma vida maior que o poema. O texto de Ceres também nos ensina a fazer poesia sem poema. Uma ressonância que fica em nós, impossível de ser dita.
ResponderExcluirLinda reminiscência. Encheu-me os olhos de lágrimas e a alma de um sereno bom e calmo, ao recordar um amigo tão querido, a quem devo tantas orientações e momentos de beleza e encantamento ao ler e reler os seus poemas maiúsculos.
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ResponderExcluirGente da Poesia, OBRIGADA pelas belas palavras, foi apenas uma reminiscência saudosa de um amigo muito querido. Fiquei também muito emocionada, só de reler o que escrevi.. Um reparo, o Café foi o 9º e não o 31º.
Emocionante.Emocionante.Ceres nos leva o sentir aquele nó na garganta.A saudade pulsa na alma da gente através de tuas benditas palavras nesse memorial.lindo testemunho/depoimento. Essa crônica não pode se perder.Aplausos e aplausos .
ResponderExcluirMario luna filho
ExcluirBelo texto, Ceres! Dá para sentir seu carinho, admiração, cuidado, e a satisfação de ter dado a devida homenagem a um poeta querido. Parabéns!
ResponderExcluirComovente o cantar de Ceres sobre José Chagas.
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