Textual


 BANDEIRA TRIBUZI*

Por Lucy Teixeira

  

 FOI FLORIANO TEIXEIRA QUE ME APRESENTOU a Bandeira Tribuzi. Naquele tempo eu escrevia no “Imparcial” e programava uma página literária aos domingos... Foi nessa página que saíram os primeiros poemas do poeta que se tornou inevitavelmente um grande amigo meu.

 Recém-chegada da Europa, Odylo Costa, filho me comunica a morte do poeta em São Luís. Com quase todos os amigos no Rio lembrei-me de telegrafar a Luís Carlos Bello Parga a fim de enviar minha palavra de imensa tristeza. Neste momento porém o que desejo é falar de Bandeira Tribuzi vivo e de como a sua ausência, sendo sentida por todos nós, alça a sua memória muito além das escuras fronteiras da morte.

 Para nós era o Zé. À tarde, quando eu vinha do Tribunal de Justiça onde trabalhava, encontrávamos na Praça João Lisboa ou à noite, na Av. Beira Mar com um grupo de amigos onde as discussões literárias se prolongavam. Foi num desses encontros que o poeta me deu para ler uma de suas últimas poesias. Lembro-me de que assim começava:

                   “Naufrágio. Eu era um marinheiro imenso

                   E estavas nos meus braços como um ninho...”

Todo de branco, a gesticular com o ímpeto dos que vivem a própria palavra porque cada palavra lhe vem tocada no coração, sua sombra a oscilar alongando-se na tarde doirada como se a paz não encontrasse – Bandeira era miraculosamente esse marinheiro imenso, submerso num mar secreto de palavras cujas raízes  só ele mesmo soubesse.

Impetuoso e lúcido, simples e generoso, declamando altas horas da noite Pessoa ou José Régio, ele nos dava uma lição de poesia e de vida, principalmente por coisas que nem sempre sabíamos; como ajudar sem querer aparecer...

Juntos publicamos uma revista, juntos discutíamos Drummond e, consequentemente, problemas de vida e de morte. Foi assim que a nossa amizade cresceu e todos mais tarde o queriam com aquele afeto que se dedica a um irmão...

De repente, sem que menos esperasse, eis que venho para o Rio com uma bolsa de estudos. Lembro de seu rosto à noite, no portão de minha casa, a sorrir e a dizer-me ainda naquela pronúncia de Lisboa que o fazia inconfundivelmente tão diverso de nós e ao mesmo tempo tão igual a nós e bem maior na ampla inquietação:

_ “... tu vais para o Rio... depois vais para Paris... e cá não voltas tão cedo...”

Havia alegria e tristeza em sua voz  mas havia, antes de tudo,  em seus lábios aquela expressão antiquíssima e misteriosa de um sorriso etrusco e que eu iria descobrir, anos depois, em museus italianos ou em Cerveteri onde estátuas abandonadas insinuavam aquele mesmo sorriso. Foi assim que no museu de Villa Giulia eu me escutei a murmurar para a manhã romana, jovem e velhíssima, os versos do poeta:

          “ Naufrágio. Eu era um marinheiro imenso”...

Este verso me restituía como por milagre São Luís, a Praça João Lisboa, a sombra alongada na luz doirada da tarde, e esse moço todo vestido de branco, com o ímpeto dos que trazem na mão e nos lábios a chama sagrada da poesia... eu me via a murmurar sua poesia até o verso final “ e de mim o teu sonho lacrimava...”

Daí por diante estes versos sempre me acompanharam; quando pensava em São Luís, em todos os meus amigos daquele tempo (e eram tantos e todos eles extraordinários: Erasmo Dias, Domingos Vieira Filho, Ferreira Gullar, José Sarney, Lago Burnet, Bello Parga, Floriano, Cadmo, L.A. Oliveira. Tobias Pinheiro, Nascimento Filho, Pedro Paiva, Figueiredo, Almeida, Reginaldo e quantos mais?) – eram os versos de Zé que me abriam na memória essa lembrança maior que eu transportava por onde eu fosse...

Agora voltando ao Brasil, quando Odylo me deu notícia, os versos me vieram dolorosamente à memória: eu vi o marinheiro imenso, todo de branco vestido, de encontro a procelas maiores...

 E, todavia, desse estranho naufrágio, ele volta para nós luminoso e eterno e seus versos serão levados pelos nossos ventos gerais em todo o Brasil e mais além, além da cidade que ele tanto amou. E se anulam assim as escuras fronteiras da morte.

Porque marinheiro imenso da Poesia tu foste, oh meu querido amigo.

Crônica de Lucy Teixeira, poeta e prosadora caxiense, um dos escritores que, nos anos 1940, lutaram para que o Modernismo fosse aceito e divulgado no Maranhão, quando ele já estava ficando velho no Brasil e aqui predominava ainda o Parnasianismo.  Foi, juntamente com o poeta Bandeira Tribuzi, uma das pontas de lança desse movimento renovador: Tribuzi, chegado de Portugal, trazendo Fernando Pessoa, José Régio, Sá Carneiro; Lucy, vinda de Minas, onde conviveu, de 1942 a 1946, com Murilo Rubião, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, entre outros. Nos anos 1946/1947, Lucy já escrevia crônicas modernistas, no jornal O Imparcial, sob o pseudônimo de Maria Karla. Não sei a data exata desta crônica, mas foi logo em seguida à morte de B. Tribuzi, em 1977 (Ceres Costa Fernandes). 

Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.  

Comentários

  1. Belíssima crónica de Lucy Teixeira... E o tempo passou. Ontem só tinha saudades do marinheiro imenso, hoje minha saudade se estende também para Maria Karla.

    ResponderExcluir
  2. Dois grandes ícones igualmente importantes para a renovação da nossa literatura e para a imortalidade do lugar em viveram, pelo trabalho que realizaram. Parabéns Ceres por nos trazer essa crônica rica de informações e sensibilidade.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog