Textual
O
PIANO
Todos os domingos eu
ia religiosamente à igreja. Mas não ia pra orar nem pra louvar ao Senhor nem
nada dessas coisas de palavra de Deus, não. Eu ia era pra ver ela tocar piano. Ela
era uma visão do céu, parecida com aquelas imagens de anjo que eu via no meu
livro de catecismo, quando era guri. E a música que ela tirava do piano era
maravilhosa.
Eu chegava cedo na
igreja e me sentava bem na frente de onde o piano ficava, esperando a hora dela
chegar. Ela entrava, normalmente, uma meia hora antes, para passar as músicas.
Trazia um caderninho, que um dia eu vi cheio de uns sinais estranhos, deviam
ser as notas musicais que ela tocava. Sentava no banquinho, abria o piano,
botava o caderninho numa espécie de prateleirinha, onde ele ficava penduradinho
e dando exatamente para ela ver os sinais e tocar por eles. Tocava sem
acompanhamento. Era uma igreja tradicional, muito silenciosa. Nada daqueles
cultos cheios de guitarra, bateria, baixo que mais parecem um show de rock, com
um pessoal tocando e cantando histericamente. O pastor tocava violino, de vez
em quando, fazendo dueto com ela no piano – uma maravilha!
Verde, vermelho,
amarelo, azul, lilás...Ela variava muito a cor do vestido. Mas sempre usava
vestido, nunca calça nem saia nem outro tipo de roupa. Sempre vestido. Não
devia ser norma da igreja, não, porque via muitas meninas lá de blusinha, jeans
justinho, até de decote. Talvez fosse pelo fato dela tocar o piano, e o piano
impor uma certa postura mais clássica, sei lá. Só sei que eu adorava quando
aqueles vestidos entravam na nave da igreja, sentavam e dedilhavam uma música
celestial, invadindo meus ouvidos e tomando conta do meu cérebro inteiro.
Na primeira vez,
entrei na igreja por acaso. Tava em casa sem nada pra fazer, aí fui dar um
passeio. Quando passava na frente do prédio, ouvi a música. Fiquei curioso, era
uma música tão suave, tão diferente...Entrei e dei com ela passando os hinos,
quase ninguém ainda tinha chegado. Sentei na frente dela e fiquei de olhar fixo
nos dedos que deslizavam pelo piano. Nem piscava. Acho que ela percebeu, pois
me olhou depois de ter passado as músicas e fez um cumprimento muito sutil,
acenando com a cabeça e dando um risinho mínimo, mas eu percebi.
Fui muitas vezes à
igreja, sempre na esperança de que ela nunca faltasse. E ela nunca faltou
enquanto eu morei na cidade, vários anos. Mas um dia eu voltei lá pra rever uns
parentes, fui ao culto e não encontrei mais ela. Não quis perguntar nada,
porque não conhecia ninguém na igreja, frequentei todos aqueles anos como um
desconhecido e ninguém se importou de saber nem o meu nome. Melhor assim. O
piano ainda estava lá, mas só de decoração, nenhum som. Agora tem um cara
tocando violão, ainda bem que não é uma daquelas bandas que ficam se esgoelando
pra ver se Jesus ouve lá do céu. O pastor também mudou, agora é um mais
novinho. Assisti só a metade do culto e fui embora antes de tirarem a oferta.
Marcos Fábio Belo Matos escreve às terças-feiras para o Textual.
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