Textual
SALGADO
MARANHÃO E A CICATRIZ DA POESIA DO SÉCULO XXI
“Vestígios de pólvora
nas palavras.
E quando há voz, é a
cicatriz que canta”.
Salgado Maranhão
Salgado Maranhão é
filho de Caxias (MA), mas vive no Rio de Janeiro desde o ano de 1973. Fora
publicado pela primeira vez na antologia Ebulição da Escrivatura (Civilização
Brasileira, 1978). É autor de Aboio — ou saga do nordestino em busca da terra
prometida (1984), O beijo da fera (1996) e Solo de gaveta (2005). Ganhou o
prêmio Jabuti (com Mural de ventos, em 1999) e o Prêmio de Poesia da Academia
Brasileira de Letras (2011, com A cor da palavra).
Lançou, em 2017, pela
Editora 7 Letras, o livro A Sagração dos Lobos que reafirma a inventividade, a
força da sua voz e a alta capacidade de preparar os sabores da linguagem.
Seus poemas foram
traduzidos para o inglês, italiano, francês, alemão, sueco, hebraico e o japonês.
Como compositor, tem gravações e parcerias com grandes nomes da MPB, como
Alcione, Ney Matogrosso, Dominguinhos, Paulinho da Viola, Ivan Lins e Elba
Ramalho.
A primeira letra do
Salgado a fazer sucesso nacional foi Caminhos de Sol, que ele próprio comenta
na Revista Revestrés (em março de 2017): “Numa
tarde ensolarada – tipicamente carioca – atendi ao telefonema do compositor
Herman Torres, que me convocava, às pressas, para ir à sua casa ajudá-lo a
compor uma canção a fim de reconquistar sua mulher, que tinha ido embora. Em 30
minutos nasceu “Caminhos de Sol”, que, milagrosamente, cumpriu sua missão. A
música foi um sucesso absoluto na voz de Zizi Possi, e – mais tarde – com o
grupo Yahoo virou tema da novela “A Viagem”, da TV Globo”.
Por incrível que pareça
não irei abordar nenhum texto consagrado do poeta, ora estudado. Ele reúne
poemas novos para organizar um novo trabalho. Coletei no Facebook, partilhado
no dia 31 de julho de 2019, portanto muito recente, o poema “Tigres”:
Vejo
que nos vês, agora.
Foram
cinco séculos
entre
a Senzala e a Casa Grande. Cinco
duros
séculos carregando fezes
de
tua alcova; lavando
o
sangue do teu mênstruo.
Morreram
sem promessa
os
nossos ancestres;
cresceu
sem nome a nossa linhagem.
E
continuamos. Lavados em nove águas,
com
a branquíssima flor dos dentes para sorrir.
E
morder!
A poesia do Salgado
Maranhão nunca esqueceu o som de um reino chamado Congo. No Mapa da Tribo há um
culto aos ancestrais, que nos chama para refletir sobre o universo da cultura
afro-brasileira. Aliás, todo o tecer poético salgadiano incendeia a desobediência,
de um bom capoeirista.
Tigres não é um canto.
É denúncia. Grito sufocando as correntes, enterradas no chão. No início, uma
voz alforriada, esquece a mitologia e os orixás para despir a sociedade
escravista, em nosso país:
Vejo
que nos vês, agora.
Foram
cinco séculos
entre
a Senzala e a Casa Grande. Cinco
duros
séculos carregando fezes
de
tua alcova; lavando
o
sangue do teu mênstruo.
Vivemos num país
escravista desde o zero ano de sua fundação. Dominamos o tráfico de homens e
mulheres negras. Sem piedade, o colonizador aprendeu a bater e humilhar os que
foram arrancados da Costa da Guiné, da Costa da Angola e da Costa da Mina. Não
tinham alma, dizia a Santa Igreja. Por isso, “os cinco duros séculos carregando
fezes”. O poeta consegue, com um golpe, retirar o mito da democracia racial,
entre nós.
Em seguida, Salgado
Maranhão diz que nunca existiu solidariedade e irmandade com os homens
afro-brasileiros. Relendo o discurso sociológico de Jessé Souza, pesquisador contemporâneo,
autor de A Elite do Atraso da Escravidão a Bolsonaro encontro: “a condição de
não humanidade dos escravos não permitia que eles acessassem algum direito ou
tivessem participação social, portanto, a eles era renegado qualquer tipo de
dignidade ou reconhecimento”.
Salgado segue a
vigília:
Morreram
sem promessa
os
nossos ancestres;
cresceu
sem nome a nossa linhagem.
Morreram mesmo, poeta,
sem nome e sem promessas. O mais trágico é que continuam morrendo homens e
mulheres negras (invisíveis). Pesquisa do Atlas da Violência 2018, ligado ao
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que setenta e um por cento dos
assassinados por ano são pretos. Há uma guerra de cor, entre nós.
O Prof. Doutor José
Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, disse em conferência que fez
na Academia Brasileira de Letras (06/06/2019): “lutamos para tonar legal a cota
de dez por cento de alunos negros nas universidades federais. Queríamos dar oportunidade
intelectual aos nossos irmãos excluídos historicamente. Observem o seguinte
aspecto. Só no Rio de Janeiro tivemos quatrocentos mandatos de segurança contra
as cotas”. A exclusão continua na
perversão histórica, da república antidemocrática do Brasil.
Salgado Maranhão é
universal. Um ser que ganha o mundo através da poesia. Mas nunca esqueceu os
espaços de ‘ajuda mútua’ como meio para conquistar a liberdade. Enfim, um tigre com flores nos dentes para
sorrir e morder.
Paulo Rodrigues escreve aos domingos para o Textual.
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