Textual
O
ANIVERSÁRIO DO PAPAI
- Esta foto aqui é da
minha primeira menina. Ela nasceu meio doentinha, a gente teve que levar ela
pra capital, passou três dias na enfermaria daquele hospital, a coitadinha.
- Hum...
- Mas depois ficou boa.
Voltei com ela pra casa, me ajudava muito na venda, comprava pão de manhã na
bicicleta com uma caixa de ovo, daquelas bem grandonas.
- ...
- Tem outras fotos dos
outros filhos, mas eu não sei onde foi que eu botei. Perdi elas de vista no dia
que meu filho me deixou aqui. Esses caras devem ter dado fim nelas.
- Devem...
- Depois que a mulher
morreu, naquele ano, tudo ficou de cabeça pra baixo. A outra que botei em casa
era uma preguiçosa, só ficava vendo TV. As empregadas que ela arrumava levaram
tudo de casa. Só ficou pouca coisa, mas as fotos eu não sei onde tão, não.
- Depois acha.
- Sabe que dia é hoje?
- Não.
- 20 de janeiro. Dia
que eu nasci. Nunca tive festa de aniversário. Nunca deixei a mulher fazer e,
depois que ela morreu, os meninos não tinham mais alegria, não quiseram mais
comemorar nada. Natal, Ano Novo, Carnaval, nada. Tudo se acabou depois que ela
morreu.
- É assim mesmo.
- Você já teve festa de
aniversário?
- O que é?
- Só fiz pros meninos. A
mulher gostava de festa, se arrumava toda e arrumava os meninos também. Nesse
dia a casa ficava uma belezura, os vizinhos ficavam com inveja. Mas ela era
boa, convidava todos.
- Ele chegou.
- Meu aniversário é
hoje. Pode não ter injeção?
- Filho da puta.
- Deixa. Pode botar a
injeção, deixa ela ir entrando, que depois eu vou meter uma injeção na tua
mãe... Hoje eu tenho que tomar banho, meus meninos vêm pro meu aniversário.
Bota uma roupa bem bonita, aquela que a menina me deu no Natal. Compra um bolo
de aniversário pra mim, eu te dou um agrado. Eu preciso banhar, me deixa em pé
mesmo.
- Filho da puta!
- Tudo bem, já já eu me
levanto...Deixa ele ir embora, esse infeliz.
- Deixa ele...
- Liga a TV.
- Quebrada.
- Vou dizer pros
meninos como é ruim aqui. Vou dizer o que eles fazem comigo aqui. Eles vão me
tirar daqui e botar esses filhos da puta na cadeia. Os meninos são importantes.
Eles vão ver. Todos pra cadeia!
- Bota mesmo!
- Tá vendo essa loja aí
no calendário? Eu já fui vendedor dela. Bom vendedor, vendia muito, o patrão
gostava muito de mim. As moças queriam comprar comigo porque eu ajeitava tudo
pra elas.
- Sei.
- Depois eu conheci a
mulher. Casei com a mulher bem novinha, uma moça de família. Depois que casei
tomei jeito de gente, não bebi mais, não joguei mais, não fui mais na casa
daquelas moças. A mulher era boa prá mim.
- Morreu de quê?
- Uma doença diferente,
uma coisa esquisita. Nunca entendi direito. Dez anos já.
- ...
- Os meninos vão vir de
tarde. Eles sempre chegam perto da noitinha. Acho que eles vão trazer o bolo e
um presente prá mim. Se for um conjunto de cuecas, depois que eles saírem te
dou uma, viu?
- Tá.
- Liga a televisão.
- Queimada.
- Já tive carro, sabia?
Tive carro, tive casa boa, criei os meninos, botei na faculdade pra ser pessoa
boa. Os meninos são importantes. Antes de vir prá cá, eu tinha casa, mas não
tinha mais carro, não podia mais dirigir por causa da tremedeira.
- Sei.
- Os meninos é que me
levavam pra cima e pra baixo, iam pro hospital, fazer exame comigo. Mas eu não
gosto de dar trabalho pros meninos, a vida deles é muito corrida.
- Eu também.
- Quando vim pra cá, os
meninos venderam a casa. Dividiram as coisas que a mulher deixou lá em casa. Eu
arrumei a mala e botei as fotos nela. Os meninos deram o resto das coisas pra
menina que cuidava de mim.
- Tu comeu ela alguma
vez?
- Não. Era muito
arisca.
- Fraco!
- Não tinha mais
interesse nisso, não. Sentia muita dor nas pernas. A tremedeira me deixava
muito mole também.
- Fraco!
- Hoje quando os
meninos chegarem, vou pedir pra eles pra dar uma volta. Faz tempo que eu não
vou ver a cidade, eu gosto de ver o mar, de ver as pessoas.
- Me leva.
- Eles não vão deixar.
Cadê teus meninos?
- Porra!
- Essa sopa rala que
eles dão no almoço é uma merda.
- É.
- Quando os meninos
chegarem, de notinha, vou pedir pra eles me levarem pra comer comida de
verdade. Aqui não tem comida de verdade.
- Não.
- Liga a televisão.
- Quebrada.
- Vou tomar um banho
depois do almoço e botar aquela camisa nova do Natal pra esperar os meninos.
Vou pedir pra eles darem uma volta comigo pela cidade.
- Me leva.
- Eu fui um bom
comerciante, sabia? Vendia de tudo na minha venda, criei os meninos e botei pra
estudar só vendendo. Os meninos viraram gente importante. Hoje eles vão vir
aqui pro meu aniversário e tu vai conhecer eles.
- Me leva no passeio.
- Os meninos vão chegar
daqui a pouco. Devem ter se atrasado, porque eles têm uma vida muito corrida.
Mais tarde eles vão trazer bolo, refrigerante. Mas eu vou pedir pra eles
passearem comigo pela cidade.
- Me leva contigo.
- Vamos ver o jornal
nacional.
- Queimada.
- Os meninos vão chegar
daqui a pouco.
- Ele chegou.
- Deixa a injeção pra
mais tarde, os meninos vão chegar já já pro aniversário.
- Filho da puta!
- Eu vou dizer pros
meninos te botarem na cadeia, seu filho de uma égua. Os meninos são
importantes. Tu vai ver...
- Filho de uma égua.
- Deixa esse viado. Os
meninos já vão chegar pra festa de aniversário. E eu vou dizer o que ele faz
comigo. Eles vão me levar pra dar uma volta na cidade.
- Quero ir.
- A injeção tá me dando
sono. Mas eu não vou dormir! Vou ficar acordado pra esperar os meninos chegarem
pro meu aniversário.
- Quando eles chegarem,
tu me acorda?
- Acordo. Nós vamos
comer bolo e refrigerante. Depois vamos dar uma volta pela cidade. Eu te levo
comigo.
Marcos Fábio Belo Matos escreve às terças-feiras para o Textual.
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