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AS LENTES MÁGICAS

              


É bom que os desinformados saibam: mulheres podem ser amigas dedicadas, dispostas a tudo umas pelas outras, mas fraquejam na hora em que entra em cena o elemento masculino. É o caso da amiga bonitona que, no seu tempo de solteira, não convidava para acompanhante de festas, ou para qualquer outro evento com presença masculina interessante, mulher alguma que lhe fizesse sombra. Fora isso, era uma amiga de fé.

Os homens não estão isentos desses pecadilhos, apenas as suas fraquezas são outras: a mulher do próximo, mesmo com toda a lealdade ao amigo, facilitou, não será poupada. Afinal, a carne é fraca.   Homens e mulheres, mentimos sobre bens, sobre conquistas, performances sexuais e bravatas. Mentiras azuis, nada que prejudique ninguém. Uma megalomania inocente.  A lista dos defeitos veniais é longa. 

Sobre defeitos, há anos, li um conto do qual não lembro o nome nem o autor – perdoem-me a má memória –mas a história gravou-se-me vivamente. O tema central da narrativa era o poder de uns óculos mágicos pertencentes a um certo Tio. Ao serem postos, revelavam não o aspecto externo das pessoas, mas o seu caráter. O resultado nem sempre era agradável, no lugar de uma bela e frágil mocinha via-se uma serpente, e deparando um rapagão, eis que surge um assustado coelho de nariz fremente, e assim por diante.  O Tio, ao morrer, lega os óculos a um sobrinho com a recomendação de usá-los moderadamente.  Não entendendo bem a recomendação, o herdeiro se entusiasma e usa-os sem parar, até compreender que o uso dos óculos só lhe trouxe amargura e decepções. Então, aposenta-os.

Os jovens creem possuir esses óculos e abusam do seu uso tal como o sobrinho da história, tentando radiografar as pessoas à procura de amigos e amantes perfeitos. Para não fugir à regra, em minha juventude, usei e abusei das lentes que me foram dadas e, durante anos, passei a ver (ou pensei ver) no íntimo das pessoas animais em penca: raposas de focinho fino passando a perna em todos, cobras sinuosas de fala melíflua espalhando venenos, fuinhas enterrando tostões, ratazanas gordas de olhos miúdos, coelhos assustados, pombas sem fel, cachorrões fiéis e tranqüilos, pavões empavonados, todo um zoológico. Sem falar nos bichos mutantes: ora coelho ora leão; ora pavão ora pomba. Ora, pombas, uma confusão.

Com o tempo, cansamos de perseguir a perfeição e nos acomodamos aos defeitos de cada um. E aí recorremos à lei do custo-benefício: trata-se, a priori, de escolher o bicho que nos incomoda menos, ou que nos dá mais vantagens, de acordo com os valores individuais. Por isso, há mulheres que suportam bem um marido-galinha, desde que ele não seja fuinha e lhes proporcione uma vida regalada.  Preferem-no a um fiel marido-cachorro, mas sem vintém. Outros preferem mais conviver com pavões que com raposas espertas. Os primeiros são mais fáceis de conduzir (bastam alguns elogios bem colocados).

Mas, cuidado! Excetuem-se dessa lei as serpentes, que com elas não há benefício. O difícil é reconhecê-las: disfarçam-se em vários outros animais; a sua conversa é melíflua, encantatória (não foi por outra que Adão e Eva foram seduzidos); são tão eficientes e prestativas que abandonamos nossos negócios e, às vezes, corações em suas mãos e consideramos inútil o uso dos óculos em sua presença.  Até a hora do bote.

É paradoxal, à medida que precisamos de óculos para enxergar melhor o exterior das pessoas, abandonamos as lentes mágicas que nos divisam o seu íntimo. Não só o tempo diminui essa ânsia do olhar interior, mas também o amor. Hesitamos em dirigir o foco do conhecimento para os entes amados, assim como evitamos olhar os espelhos quando portamos o olhar conhecedor. Tememos a revelação clara do bicho que veríamos ao “olhar” o objeto do nosso afeto e do bicho que somos refletido.  Sobreviveríamos à decepção?

 

Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.       

Comentários

  1. Entre a reflexão zen a pragmática, que é o jeito prático mesmo de seguirmos em frente. Sempre um soco (com luvas?), Ceres, teus textos. Nem vou perguntar que animal eu seria. Ou que hora ou outra eu sou... Nunca um "marido-galinha". Mas uma coisa, sim, consciente da imperfeição, sempre, acho que esse é o rumo...

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