Textual
Cedo lugar, no texto de hoje, ao editor e poeta (ou poeta-editor) Alberico Carneiro, que fala do poeta e seu duplo, este homem-ciborgue.
O POETA, O FRANKENSTEIN DO
INTERDITO
Alberico Carneiro
Alguém da comunidade
humana diz: - Aquele ali é poeta! – Então, a pessoa assinalada passa a ser
observada com um olhar enviesado. Não é fácil argumentar que poeta seja uma
entidade e que o ser humano em que habita, um cidadão comum e normal, que se
apresenta com carteira de identidade e CPF, é apenas um hospedeiro, portanto,
como tantos, um humano comum, circunstancial, cotidiano, tributável, de rota e
rotina e, às vezes, banal como um pária social. Mas, apesar disso, de vez em
quando ou até, constantemente, dependendo de quando a entidade baixa e
incorpora, se torne um tanto diferente, estranho, excêntrico. Um ou outro,
contrariando a regra geral, arrisca dizer que, naquelas circunstâncias do
transe, tratar-se de um ser iluminado, provido de poderes mágicos. O que,
dependendo do tempo e lugar, poderá se tornar perigoso para o demiurgo. E
trazer-lhe consequências até funestas.
Data vênia: Nós, os do
gênero humano, todos, sem exceção, em maior ou menor percentagem, por uma
necessidade explicável, somos dados ao ofício da mentira ou divagações de
circunlóquios, sobre nós mesmos, pois, sem percebermos, nos inventamos ou
reinventamos outros, diariamente, em maior ou menor proporção, embora, depois
do transe, não saibamos explicar como e porque, onde e para que fizemos aquilo.
Na realidade paralela, dada a sua quota de inverossimilhança, não fomos nós, os
hospedeiros, que fizemos alguma coisa, senão os atores que representaram em nós
os papéis de protagonistas que nos supusemos ser e fomos. De modo que, sem nos
apercebermos, somos mais os outros, que inventamos, ao longo da curta ou longa
existência, do que os hospedeiros, comuns, iguais, banais e óbvios: os das
rotas de rotinas, com pleonasmo e tudo mais. É quando nos tornamos menos
complicados e nos libertamos das amarras das convenções, que conseguimos, sem
muito esforço, voar como pássaros e admirar o poeta que apontamos com o dedo
indicador como louco.
Na prática, ninguém vive
a prática. Todos nos aferrolhamos à ficção, pois ninguém quer assumir ser o
cidadão igual, o do dia a dia. Todos, sem exceção, apenas na hora de ser, amam
o diferente, pois não aceitam o provisório e o precário, embora, paradoxo,
detestem mudanças.
Nesse mercado de
disputa de aparências entra o poeta, esse ser olhado pelos cantos dos olhos, na
cotação de anormal, insano. No entanto, o que há nele como aparência é a
verossimilhança autêntica atestada pela posse do ato da criação.
Esse bicho torto, meio
bruxo ou feiticeiro, tido como louco dos tinteiros e canetas, às vezes arisco;
às vezes, dócil como um cão doméstico, é tido na conta de avariado, em razão de
certas atitudes e comportamentos que fogem ao padrão da ética. Ele tem por
hábito procurar ser, em síntese e essência, nada habitual, comum ou
convencional, embora, como ser hospedeiro, seja apenas mais um na multidão.
A interpretação ou
versão dada pela espécie humana sobre o poeta ser louco, se deve ao conceito
que têm de loucura que, segundo ela, pode se dar ao nível de um desvio, que
pode ser tanto de comportamento ou de conduta, por transtorno mental, quer
dizer, psíquico, quanto ao nível de um desvio de sentido ou de significado,
pois, tanto num caso ou no outro, mudam o curso normal, natural das coisas ou
dos acontecimentos. O que, em síntese, incomoda, pois destoa tanto dos atos de
um ser normal, em rota ou rotina, que exige desse quieto navegante da vida,
sair do sossego, da área de conforto, se realinhar dos trilhos para as trilhas.
Felizmente, o poeta,
com ser um Frankenstein psíquico, porque é sempre a soma de pedaços de dezenas
ou centenas de outros poetas, já mortos, enquanto hospedeiros, contraria todos
os cânones da normalidade, tendo opiniões e procedimentos nada canônicos, quer
dizer, de praxe. E pode, por isso, ser aquele que pensa e percebe as coisas e
seres mesmo quando já estão fora do alcance das mãos dos humanos, em estado
normal.
Antonio
Aílton escreve aos domingos para o Textual.
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