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 BRINCANDO COM AS PALAVRAS



 

A Cayro Léda e Natasha Memória

 

Gosto de me divertir imaginando o que fazer com as palavras. Acho interessante como cerca de duas dúzias de letras são capazes de reproduzir em palavras quase tudo o que sentimos ou imaginamos. Como nem sempre tive à minha disposição artefatos que pudessem ser manuseados como se fossem brinquedos para ajudar a passar o tempo, desde a primeira infância comecei a transformar palavras em jogos mentais que me pudessem conduzir a outras realidades.

Em troca, as palavras deram-me tudo o que tenho. Sou grato a elas, que são minhas amigas e companheiras em todos os momentos.

Lembro-me que no final de 2003, um aluno chamado Cayro Léda, que hoje brilha nas áreas de atuação que escolheu, me ofertou um livro intitulado “Abelhas Assassinas”, de Nygel Filho. O livro é uma novela na qual todas as palavras são iniciadas com a letra A. Mas junto com o livro veio também um desafio: escrever um conto no qual as palavras também começassem com a primeira letra do nosso alfabeto.  Aceitei. E dias depois escrevi o seguinte texto:

 

AMORES ASSASSINOS

 

Antigamente, Ana amava a Antônio, advogado ardiloso. Antes, armou a arapuca a Anselmo, alcoólatra ambicioso. Agora Ana arrasta as asas a Anderson, antigo amigo.

Anderson, artista acostumado a andanças, às artimanhas amorosas, arranja argumentos a avançar ao alvo. Apaixona-se ardentemente. Adianta-se à amorosa ala admiradora. Abobalhado anda.

Amavelmente, Anderson afasta as aventuras adjacentes. Arremessa algumas amantes antigas ao alojamento amoroso. Aspira à amada... à alcova. Amor anestesiando-lhe a abóbada adamantina, afagando-lhe as artérias apresadas aos ásperos abraços apaixonados.

A alegria aproxima-se.

À Ana agrada a alegria. Aspirando alfazema, aspirando a alamares, arquiteta amanhãs: anéis anulares, algemas acasalantes, augustas aventuras, arrasadoras alvoradas... Aves apaixonadas acariciando-se à aurora. Alegria, alegria, alegria...

Antônio, ardiloso advogado, antigo amado; Anselmo, avacalhado antecessor ao atual amante. Ambos ajustam-se. Armam armadilha. Acercam-se assobiando. Atiram, atiram, atiram. Assassinam Antônio.

Acaba a alegria.

Argumentações, anotações antigas alusões amorosas, advogados armam argumentos. Aparecem álibis... Acusados absorvidos. Assunto arquivado.

Ana, apaixonada, anda a acusar antigos amados. Angustiada, afoga as acusações. Adianta? Amigos aconselham: “Amores aparecerão, ânimo, Ana!”

Assim a angústia acomoda-se.

 

Gostei da ideia e resolvi escrever um conto com cada letra do alfabeto. Claro que foi difícil. Já coloquei alguns em redes sociais e os cinco primeiros devem sair ainda este ano em uma antologia. Um dia devo publicar todos, mas por enquanto vou deixar aqui para meus poucos leitores um que usei recentemente em uma aula. O título é “Virgem Violentada”.

 

- Vô Valdemar, Vitório violentou Virgínia!

- Viche! Verdade, Valberto ?

- Verdade verdadeira, vovô, Vicente viu.

- Vamos ver. Vizinhança vem vindo. Vamos, Valberto.

- Vamos, vovô!...

 

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Várias vezes, Vovô Valdemar vira Virgínia varrendo varanda. Vestidinho vermelho, velhinho... Vendendo vitalidade. Virgínia valorizava virgindade, vivia vangloriando-se: “Vivo virgem, valorizo-me.”

Verdadeiro voyeur, Vitório vigiava Virgínia. Violentava-a visualmente. “Vou ver Virgínia varrendo. Voltarei.”

Vicente, vagabundo velhaco, vaticinou: “Vai violentá-la. Vou ver, vou ver...” Vicente viu.

Vestidinho vermelho, Virgínia varria varanda. Vitório vinha vindo. Virgínia virou-se, viu Vitório violentamente vencê-la, virá-la, violentar-lhe ventre virgem, verter vertiginoso vômito viril.

Vicente viu Virgínia vestir velhíssimo vestido vermelho. Virgínia Voltou. Vicente viu vidro. Viu veneno. Viu Virgínia, vermelha, vomitar verde vômito. Vicente viu vida vazia.

 

         Gosto de brincar com as palavras. Elas sempre foram minhas amigas ao longo de minha trajetória em busca de um pouco de diversão. Muitas vezes elas foram meu grande refúgio.

 

José Neres escreve às segundas-feiras para o Textual.

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