Conversas vadias

Silêncio em Família*

 


José Maria Nascimento nasceu em São Luís do Maranhão, em 18 de setembro de 1940. Eu te saúdo poeta a beijar essa bela alma, por tua chegança à Lira dos Oitent’anos!

Silêncio em família é o segundo livro que rebenta do angélico estado d’alma de José Maria Nascimento, publicado recentemente [lê-se: no longínquo 1968], depois de ter ganhado, em concurso literário, o Prêmio Gonçalves Dias. É um livro humano, identificado com o poeta, sensível e sofrido, acima de tudo:

“Basta-me a chuva dos olhos dos que na chuva adormecem”. E parte delirante formalizando seus íntimos pedaços de angustias: “Na mesa, os pratos e a inocência do passado./Um olhar de mãe que já se cala/ quando o vinho do copo é derramado./ A lenha, no fogão, ainda estala./ A mãe, exausta se levanta e o filho embriagado canta”.

A poesia de Nascimento é viva, atuante, dolorida, terrivelmente lírica e às vezes misteriosa, tem muito da cadência angustiante de Paul Verlaine: “Sur votre jeune, sein laissez rouler ma tetê, et que jê dorme um puisque vous reposez”. Sim, deixa minha cabeça rolar, e me deixa dormir, já que você está descansando... Sentimos os soluços do poeta quando lemos:

“Os pés estão suspensos como plumas sobre o vidro,/ leve e ainda mais breve que um grito já partido./ Porquanto aqui retorne à tragédia/ me acostumo, ante o corpo em vertical/ como que medido a prumo./ Somente a cabeça pende para o esquerdo do seu recurso./Cabe inteiro o corpo numa hóstia,/ como a bênção na ternura dum soluço”.


O poeta José Maria Nascimento na Praça João Lisboa, em São Luís do Maranhão

A pureza da ausência é associada a um silêncio que o poeta determina em seu núcleo mais íntimo, de família, uma necessidade de habitar as mãos com algo palpável e muito sentido:

“Senhor já não estaremos aqui quando do Teu retorno à face do abismo/ onde trinta e três anos habitaste./ Já não estaremos aqui e em parte alguma da morte,/ porque já não estaremos tranquilos por não saber onde estamos,/ por não saber o que fomos nem porque [sufocados por luz] nos suicidamos.”

Adiante o poeta se contenta com a morte clínica do seu corpo cansado de lavras noturnas: “Perdemos a alma e o céu, mas o inferno ainda existe:/ perdemos os olhos e a paisagem e as trevas que o eterno embalsamava:/ perdemos os campos e as mãos que a terra áspera lavraram:/ perdemos os pés e os caminhos, os lares e as águas:/ perdemos Deus e Cristo na memória/ e por fim nos perdemos como agora,/ finalmente e eternamente seremos nós”.

Perplexo ante um aconchego físico-social embotado de charco e de abjetas consequências, José Maria Nascimento elabora um trabalho valiosos por que “ele sabia de estar sozinho quando a vida lhe assaltava/ e era sempre sobre a sua sombra que as suas ruínas declinavam./ Pouco sabia de si que era velho e o chão de fadigas lavrara:/ madrugueiro, cedo da manhã se estendia/ e lentamente a terra elaborava./Foi-se o tempo e com ele os pássaros,/ seu funeral de noturno cantava:/ e era dia, mas de trevas tantas que quem chegava não sentia escuro.”

Por fim, o poeta mergulha profundo nas palavras, a justificar a tragédia ocasional dos seus gritos, relevando ou tentando abonar a peste que lhe fere a alma, ou se autoanalisando, e analisando o poema, criatura de sua criação, cremos melhor:

“Poema não é a suave solidão, a rede vazia, um livro aberto, os olhos alvos, as mãos em trevas./ Poema não é o choro oculto, o liquido mármore azul, as letras escorrendo ao fundo./Poema não é o cintilar de peixes, o arpão no ar ferindo pássaros, o lar antigo, na memória vivo./ Poema não é breve infância, a velhice contemplando auroras, as frias tardes soluçando cores. / Poema não é a plumagem dos pássaros, o acenar de mãos em solitário cais, o longo parto extinto, de suas dores./ Poema não é a ceia de Natal, as árvores de vidro uma sala alva, e breve carta de quem está ausente./ Poema não é a glória dos vencidos, a mesa posta para as fomes virgens, o sonoro despertar de um fruto suspensos./ Poema não é o arco-íris na madrugada, a choupana solitária em vale oculto, a insônia dos cavalos em verdes bosques./ Poema não é a vela que apaga, o sol que se espera para os olhos cegos, a boca que se abre para o alimento./ Poema não é odor de éter em hospitais, e bisturi quebrado em finos ossos, o voo noturno de morcegos alvos./ Poema não é a áspera planície dos mortos, o vazio túmulo de verde-azul colorido, as portas abertas para a infalível eternidade./ Poema não é a amizade mais nova, o cruel abandono de um final de missa, o esperado sobre estreita ponte./ Poema por poema é acharmos palavras fartas como um cadáver é de escuro, simples como a pedra é de silêncio.”

É ele, sim, José Maria Nascimento, o poema... Aí está o poeta que medrou as ladeiras nos pés e escreveu depois sobre a infância das águas...Expoente literário de primeira grandeza dentre os de nossa geração...É ele José Maria Nascimento, sob meu olhar, o maior poeta lírico do Maranhão!

__________________________

*Fernando Braga, in Jornal ‘O Estado do Maranhão’, 27 de julho de 1973. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Textual

Textual

Textual