Textual
ROTINAS
Todos os dias, invariavelmente,
Eusébio punha a mesa para o café, almoço e jantar. Café às 7h10min, depois de
distribuir, sobre um pano de prato com a cara do Mickey que ele comprou na
Feira Hippie, em Belo Horizonte, a xícara de café com leite em pó e adoçante, o
mamão e a banana num prato do lado direito da xícara e as quatro torradas, duas
com manteiga, duas com geleia, do lado esquerdo. Em posição paralela à xícara,
o copo de suco pela metade. Ao lado do suco, os três comprimidos.
Almoço era a mesma
distribuição geográfica sobre a mesa, mudando apenas as substâncias sobre os
pratos e, claro, sumindo a xícara – que voltava no jantar, acompanhando outras
torradas, mas desta vez sem as frutas. Almoço às 12h15 e jantar às 19h20. Era
assim. Sempre.
“Pra quê mudar?”, ele
dizia, toda vez que Horácio lhe perguntava por que tanta racionalidade nessa
rotina. “Moro só. Isso me dá a possibilidade de ter a rotina que eu quiser.
Foda-se quem não gostar”.
“Um dia, você ainda vai
arranjar alguém que destroce essa sua rotina horrorosa, de novo”.
“Se vier com essa
intenção, mando tomar no cu”, era a resposta, todas as vezes em que o colega de
condomínio lhe atinava essa possibilidade.
Seis anos já que a
Judite se fora. Ela não permitia que ele fosse assim. Ela bagunçava um pouco
essa engenharia toda. Acordava tarde, não gostava de pôr mesa para comer, não
obedecia a nenhuma rotina da casa. Ele detestava isso, mas a amava. Por isso,
cedia no que dava.
Viveram bem, no que
podia ser bem uma convivência entre dois adultos, sem filhos, sem cachorros e gatos. Mas um dia ela foi
embora – para ele, de repente, para ela, porque o amor se esvaiu numa série de
ações rotineiras. Ela não lhe disse isso diretamente. Contou a uma colega comum
– um recado, na verdade, porque ela sabia que a colega iria, correndo, contar a Eusébio. Ele a ouviu, fez
um muxoxo com os lábios, um movimento de negativa com a cabeça, e não tocou
mais nesse assunto.
A rotina tomou conta da
casa, da vida e da ausência de Judite.
“Não quero mais viver
com ninguém. Prefiro trazer alguém aqui, uma vez por mês, que me coma ou que eu
coma. É mais barato e mais prático” – disse a Horácio, num dia em que as
latinhas de cerveja fizeram um grande volume na lata de lixo.
“Não te tira da rotina,
né?”, arguiu o colega.
“Exato”.
Eusébio parecia já
estar feliz, dentro da sua “engenharia existencial”.
Marcos
Fábio Belo Matos escreve às terças-feiras para o
Textual.
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