Conversas vadias
MOTIVOS DA POESIA DE JAMERSON LEMOS*
“Da alta e
profunda-idade, ao irmão e amigo Fernando Braga”:
“Olha: passamos a ponte. / Apontes outro
caminho / Atravessaremos o incêndio, / outra paisagem rumo. / As pás e paz: /
cavemos caverna / alma inverna. / Passamos do instante. / Olha: como sopramos
azuis, pardos, vermelhos? / estamos sós, somente / apenas mente nos molhamos. /
Ainda o centro, a mesa gira, / a ponte partiu para o fim, / por que rimos?”
De vendedor de
apólices de seguros pelas ruas de São Luís, Jamersom Lemos se integrou
facilmente às letras da Cidade, fazendo parte em reuniões de um dos grupos mais
atuantes lá vividos, “O Bar Atenas”.
[...] Foi no bar
do Hotel Central, numa manhã ensolarada que aconteceu o fato, e que presenciei,
mas que aqui o transcrevo, retirado da verve extraordinária do jornalista
Sérgio Brito, contada em seu livro ‘O Brasil sem retoque e outros escritos
salvos da autocensura’: “Quando de passagem por São Luís, não posso precisar se
em 1967 ou 1968, o poeta Nascimento Moraes Filho colocou-nos frente a frente no bar
do Hotel Central, como a querer forçar uma disputa de tiradas espirituosas,
que, previdente, não deixei acontecer. Sem falsa modéstia, a diferença de nossa
estatura intelectual era igual àquela que, trinta anos antes, no confronto com
o Cego Aderaldo, fizera dele um pigmeu. Sobrou, então, para Jamerson Lemos, jovem
que, à época, estava a praticar seus primeiros versos e não se contentava em
participar, apenas como ouvinte, da roda literária ali formada, implacável como
neófitos abusados. “Você também é poeta? ” indagou ele a Rogaciano? “Também é
você”, bateu de volta o ‘violeiro itinerante’. Gargalhada geral!
Espírito
irrequieto, cheio de simpatias e modos decisivos, eu o conheci antes da
publicação de ‘Superfície do Vento’, portador de grande simpatia, contagiante, mesmo,
que tão bem caracteriza os poetas sem prados certos, com seu alforje cheio de
talento e revolta, embaralhados como se sente neste seu livro de estreia, num
linguajar conciso e liberto contra as coisas que sente injustas e contra o
desgaste existencial a que todos estamos submetidos, quando proclama:
“Onde guardaste o pó de minha vida?” E mais
adiante: “Quanto me dói ter rosto”. Esses versos refletem não uma posição de
anti-homem, como uma entidade biológica e espiritual, sendo uma posição
definida contra a passividade, a inautenticidade e a alienação. É ele quem
preconiza: “Ser eu, apenas eu e nunca um ferido”.
Sua simbologia
aparentemente hermética, mas não por isso, acessível, lembra-nos bastante seu conterrâneo
João Cabral de Melo Neto, possuidor de uma dualidade marcante em seus poemas de
“visões oníricas e subconscientes, via surrealismo, e visualização do real, dos
objetos do mundo, uma lenta progressão em direção ao lado claro, lúcido, sadio
do ser e das coisas, a fase das imagens solares, branca, ainda não desérticas,
um maior despojamento da linguagem até a ascese, no limite da anti-arte,
expressão que quase não consegue os meios de realizar-se, correndo o perigo de
morrer como impressão não expressa”. Mas como neste último percebemos o sentido
oculto do verso, à medida em que o adentremos e sentimos a força de sua
mensagem a deslizar clara e fria como as águas do Capibaribe, em seu estar
ausente e sozinho.
É ainda ele que
fotografa com singularidade um dos mais deploráveis problemas sociais – a
prostituição – quando nos diz: “Prostituta vítima-azul de todos os morcegos, /
vítima branca de todos os pecados;/ é nesta rua de olhos triturados nos
espelhos das esquinas. / É nesta rua de sexo de pedra que me anoito em
derradeira vez/ com u’a humanidade falecida”.
Como vimos, ele
se constrange e se martiriza diante do problema o qual se sente incapaz de
solucionar [“não tenho agora sequer uma
estrela que possa colocar dentro de teus olhos”] e se aterroriza ainda mais
quando sente esvair as perspectivas de equacionamento [“me anoito em derradeira
vez com u’a humanidade falecida”].
Sobre ‘Superfície
do Vento’, afirma José Chagas que “a temática de Jamerson Lemos varia muito e
seus trabalhos apresentam visíveis mutações, característica de quem busca ainda
com certa timidez, o que a intuição está a apontar-lhe como um caminho largo ao
seu futuro poético”.
Vejamos o poeta
neste antológico Poema do suicida:
“Hoje me
acordarei/ sem o teu retrato na face do
espelho presença do espelho./somente hoje, depois que a noite venha,/ porque é
hoje o dia de morrer./Criarei com o cuidado do adeus uma chama que queima o meu
sorriso / e destrua até o grão de areia que por ventura venha nos meus
pés./Levantarei na taça de granito os fios purpúreos do meu peito em agonia,/ e
do aquário sem data dos meus olhos,/ onde os peixes morrerão por falta d’água./
Depois caminharei sem medo./ sem fatos, na procura do inatingíveis/ E a minha
Pátria brotará das minhas veias./ Da minha camisa, traçarei minha bandeira,/
hoje escreverei na superfície limpa do lugar do qual fugiu o teu retrato:/ esse
é meu sangue, usa-o nos seus lábios./ Dessa gaveta tira o meu revólver./ E põe
naquele armário esta caneta”.
E Wherter
novamente aparece como apuro apaixonante da leitura de Goethe...
Jamerson,
decepcionado e impotente ante um a realidade que ele supõe imutável, continua
em sua linguagem simbólica:
“Já não existem
as gramas, / e estes campos se abrigam/ no busto de todos os meus mortos”.
As gramas de que
nos fala o poeta, são para ele a esperança, de há muito perdida, na transformação
dessa realidade execrável que ele vislumbra e deplora. E ele foge! Luta até
contra o tempo para se refugiar no passado; talvez para viver novamente a
inocência desvinculada e descomprometida de sua meninice. Ele, como os campos,
“se abriga no busto de todos os seus mortos”.
Fez sua estreia
literária no Cassino Maranhense, com a presença de Sarney, ao tempo governador
do Estado; presentes muitos intelectuais da cidade que lhe foram prestigiar.
Era ‘Superfície do Vento’, um livro que continha excelente poesia, moderna e
engajada contra as distorções sociais visíveis na época, e com o aval honroso
de Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, com considerações de Mauro
Mota e Alberto Cunha Melo. Quando saí de São Luís, pensava que o poeta tinha
voltado para o Recife, mas depois me disse Nauro Machado que Jamerson Lemos
tinha ido para Teresina, onde lançara mais dois livros de poesias, ‘Subúrbios
do ócio’ e ‘Sábado Árido’, e ali falecera, em 2008, aos 59 anos de idade, o que
constatei, depois de algum tempo, por acaso, em uma notícia na internet, depois
me confirmada pelo escritor e poeta Raimundo Fontenele.
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*Fernando Braga,
in Jornal ‘O Estado do Maranhão’, 26.7.73, enfeixado em ‘Conversas Vadias’,
antologia de textos de autor.
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