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 DE SUPERMERCADOS E CANTIGAS INFANTIS

                         


                   

Na São Luís de tempos passados, o ponto de encontro informal de amigos, conhecidos e prováveis paqueras (ainda se usa essa palavra?) era indiscutivelmente a Rua Grande. No espaço que ia do Largo do Carmo ao Edifício Caiçara, encontrava-se uma pá de conhecidos por metro quadrado. Hoje, a ignara massa humana que se desloca na antiga artéria das compras elegantes amedronta. Para enfrentá-la, guardamos o relógio na bolsa apertada no peito e, ao sair de uma loja, aceleramos o passo até alcançarmos a próxima, como um soldado que troca de trincheira. Nos shopping centers, um tanto quanto livres da paranoia do assalto, arriscamos o olhar em torno e podemos divisar um conhecido aqui, outro acolá, pontos emergentes na densa onda de estranhos.

Mas é nos supermercados de bairro, concentradores de uma clientela fixa, que vamos reatar aquele convívio perdido com o crescimento urbano. Lá encontramos geralmente as mesmas pessoas fazendo compras nos nossos horários. E como esse encontro é constante, as formalidades são desprezadas. Entramos direto na reclamação do preço dos gêneros, falamos mal do governo, protestamos contra a mudança constante de lugar dos gêneros nas prateleiras e tricotamos as últimas – enquanto escolhemos laranjas e bananas ou esperamos que o funcionário do balcão de frutos do mar (ô nome besta!) trate o peixe ou pese o camarão.

E foi numa dessas conversas de prateleira, entre caixas de molho de tomate, que Carlos de Lima, historiador e folclorista, referiu-se, a propósito de minha crônica As Histórias que a Vovó Contava, sobre o patrulhamento ideológico das histórias da carochinha, que o mesmo se dá nas cantigas infantis. E, divertido, contou do espanto de sua nora canadense ao receber um áudio de cantigas de roda brasileiras. O espanto de quem, nascida em uma cultura alienígena e de primeiro mundo, que não podia entender como incentivamos as crianças brasileiras a cantar “Atirei o pau no ga-t-o-tó/ mas o ga-t-o-tó não morreu-reu-reu”.. ou “O cravo brigou com a rosa/ Debaixo de uma sacada/ O cravo saiu ferido/ a rosa despetalada” e ainda “Senhor padre eu me confesso/ Larão, larão larito/ Senhor padre eu me confesso/ Que matei o seu gatito”. Ainda lembrei de uma outra cantiga que diz assim: “ Pai Francisco entrou na roda/ Tocando seu violão/ bararão-bão-bão/ Quem vem de lá, seu delegado/ Pai Francisco está na prisão” (?)...

A estupefata nora deve ter notado que, a par das atrocidades confessadas contra plantas e animais, verifica-se nas nossas canções de roda a eleição do gato como objeto de perseguição e tortura infantil – o que não foge à verdade. Parece-me até que faltou, para espelhar melhor a realidade, uma cantiga sobre puxar o rabo do gato.

 E que diria a moça canadense se soubesse que não apenas as crianças mais taludinhas estão expostas a influências que tais, mas que bem intencionados papais e amorosos avós aterrorizam bebês com cantigas de ninar do teor de: “Boi, boi, boi, boi da cara preta vem ver este menino que tem medo de careta” ... “Dorme filhinho que a cuca vem aí” e, ainda, “Bicho Papão,  passa por aqui, vem pegar fulano que não quer dormir”.

O resultado é que alguns pedagogos, por conta disso, já cuidaram de modificar a letra da mais popular das nossas cantigas de roda. Cantemos o novo e reciclado Pau no Gato: “Não atire o pau no gatô-tô/ Porque isso não se faz/ O gatinho é nosso amigo/Não devemos maltratar os animais/ Jamais!”

É, seu Carlos, concordo até com um patrulhamento moderado dos textos das músicas infantis, afinal maltratar plantas e animais e aterrorizar bebês é, no mínimo covardia. Por outro lado, não sei de traumas infantis causados pelo Pau no Gato e quejandos, mesmo porque as cantigas de roda não incluem a prática do lançamento de porretes nos felinos domésticos. “Se unir o gesto à proposta torna a aprendizagem mais eficaz, devemos temer mais as canções das paradas de sucessos, tais como” Cachorra... Vou te jogar na cama e te dar muita pressão... Vou te cortar na mão... Vou aparar pela rabiola” ou “Um tapinha não dói”... Todas cantadas e “interpretadas” pelos cantores mirins, com gestos obscenos. As meninas, inclusive sem entender a degradação proposta ao sexo feminino, sobem e descem num frenético rebolado, dando-se tapas e arrebitando as bundinhas, devidamente aplaudidas pelas plateias familiares.

É, vou dizer ao Carlos, no próximo dia de supermercado, que não mande à sua nora nenhum áudio dos nossos mais famosos “cantores”.

 

Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.

Comentários

  1. Ainda alcancei as cantigas com o teor original, cantávamos ao luar, brincávamos de roda e outras coisas, isso não fez de nenhum de nós um psicopata, mas crianças alegres, brincalhonas e saudosistas justamente dessa alegria. Hoje há jovens atirando nas escolas, alhures e aqui, explodindo as dissimulações e patrulhamentos e expostas aos mais altos graus de naturalização da pornografia, da violência, da sexualização infantil, que os mesmo canais que ajudam a pôr os pedófilos na cadeia exultam com uma criança agindo eroticamente como adultos. Lembrando ainda do monitoramento da literatura, para os já adolescentes e jovens, como sérios cortes no romance O Cortiço encomendados por uma famosa, poderosa escola particular brasileira. Então está tudo certo, a cada infância seu bem, seu mal, sua pedagogia e seu horror.

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