Textual
DA BANALIZAÇÃO DO MEDO
Quando em Beirute, a chamada Paris do
Oriente-Médio, no final da década de 70 à de 90, do século passado, os
bombardeios estilhaçavam os belos e milenares monumentos e balas de fuzil
zuniam em suas ruas, só por ter o Líbano, um destino semelhante ao da Polônia,
ponto de passagem entre nações maiores e em perpétua beligerância, nós, aqui na
província, tiritávamos de medo ao acompanhar as reportagens em imprecisas
imagens de TV, a esperar o estouro, quem sabe da terceira guerra mundial, que
calculávamos seguisse o modelo das anteriores.
Víamos, também, casais bem vestidos,
jovens ou maduros a frequentar cafés e casas noturnas como se nada anormal
estivesse acontecendo. Isso nos interessava sobremaneira pelos bons amigos de
famílias oriundas do Líbano, que os temos aqui em grande número e qualidade. Como seria isso possível? E chegamos à
conclusão que os cuidados das gentes e a vida reclusa não resistem a conflitos
contínuos.
Outra lembrança, esta em
preto-e-branco: crianças vietnamitas, de túnicas claras, sapatos de madeira, em
fila indiana, mãozinhas dadas, caminhando rumo à escola. Seria uma cena comum,
se não estivessem todas usando enorme chapéu cone, feito de forte e dura fibra
trançada, que lhes ensombrava os pequenos rostos. São para protegê-las de
estilhaços de granadas, diz o texto abaixo da foto. Podemos imaginar
criancinhas se expondo a estilhaços do que quer que seja para estudar?
Em cena, imagens da minha ardente imaginação
de menina viciada em livros, o Vesúvio, soltando cinzas e fumaça, e os
habitantes de Pompeia e Herculano nos mercados, em almoços, resistindo a deixar
propriedades e valores, enquanto se aproximava a catástrofe, desacreditada por
eles. Nos relatos de Plínio, O Moço, muitos
dos que acreditaram no perigo conseguiram refugiar-se em vilas próximas, antes
do estrondo fatal.
Corte para 2020, número cabalístico,
ano em que todas as coisas, a partir de março, quando começa realmente o ano no
Brasil, foram sendo adiadas para o mês seguinte: em abril faremos compras; em
junho reabriremos as escolas; em julho, quem sabe, voltaremos a viajar; está
melhorando, poderemos reabrir o negócio; em agosto, ainda não teremos aulas,
talvez em setembro. E o encontro de família para outubro, ora dezembro com
certeza... Réveillon, carnaval adiado. Em janeiro, seremos felizes?
Lá pelos idos de outubro, a
agressividade do Corinavírus19 dá um respiro, nós, os portadores de
comorbidades, maiores de 60 com algum juízo que permanecemos em distanciamento
social, cativos dentro de nossas casas, privados de todo o convívio físico,
exultamos e, sentindo-nos mais seguros, emergimos e nos atrevemos a pequenas
audácias, tais como tomar um café em uma casa de chá ao ar livre, voltar,
timidamente aos shoppings, mascarados e munidos de álcool em gel, receber e
visitar a família, sem abraços.
Enquanto
isso, outros que tais, como manada após aberta a porteira, desandaram a
festejar com se fossem os seus últimos dias sobre a Terra. Aglomerações, festas
do bagaço com grandes esfrega-esfrega, nada mais importa. E o vírus volta a
atacar. Ressalvamos os trabalhadores que não podem evitar os ônibus lotados, as
filas, os pequenos empresários que trabalham para o sustento próprio e alheio.
Vítimas da manada.
A vacina, onde está a VACINA? Talvez em
fevereiro, ou maio. Julho? Até o final
de 2021 estaremos todos vacinados? Ou será 2021 outro ano que não acontecerá?
Enquanto isso, estamos menos para o
perigo enfrentado com certas cautelas, como o souberam fazer com as crianças
daquela aldeia vietnamita, do que para o frenesi suicida que acometeu Pompeia
ou para o desfastio indiferente dos habitantes da Beirute devastada pela guerra
civil.
Ceres Costa Fernandes escreve às quartas-feiras para o Textual.
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