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 A ÚLTIMA NOTÍCIA

 


Eram 11 da noite, e eu já me preparava para o conforto da minha cama. O telefone tocou. Uma voz pausada e triste me dá uma notícia indesejada. Mal podia acreditar no que estava ouvindo.

― Liguei pra te comunicar que o Betinho morreu.

― Betinho, o irmão do Éder?!

― Isso mesmo. Anteontem. Acidente de moto.

Do outro lado da linha, um velho amigo da época em que, recém-casado, cheguei ao Jardim Alvorada, bairro de classe média baixa da minha cidade. Lá fiz bons amigos, e o Érico era um dos mais chegados, quase um irmão.

Depois do futebol de salão no sábado à tarde, a gente se reunia no bar da Vilma para tomar cerveja, comer mocotó e jogar conversa fora. Só saíamos depois das dez. Era o momento mais esperado, quando a gente discutia sobre o jogo: uma falha do zagueiro, um frango do nosso goleiro, um golaço meu. Também havia as polêmicas sobre futebol, política... fofocas. Sinuca, e muita brincadeira. Algumas até de mau gosto, como, por exemplo, pôr no copo do amigo remédio que dava diarreia. A conta era rachada, mas de vez em quando um ou outro não tinha a sua cota, ou mesmo nada. Aí o jeito era negociar com a Vilma. E para isso era preciso uma boa conversa. E só o Érico era jeitoso com essas coisas. Sempre conseguia “pendurar” parte da conta para o sábado seguinte.

Tinha também a pelada da praia quase todos os domingos. Depois subíamos para o clube dos funcionários do Estado para almoçar, sempre com muita cerveja e muita gozação.

Tempo bom aquele, quando ainda não havia redes sociais e a gente estava sempre junto, sentava nas calçadas de nossas casas pra conversar. E voltava tarde da noite, caminhando e falando com as pessoas pelo caminho.

Depois que mudei do Alvorada, fui perdendo o contato com esses amigos. A cidade crescia, e logo alguns também se mudaram para os novos conjuntos habitacionais na periferia. Eu morava longe, e não podia estar com eles todo fim de semana. Anos mais tarde, já separado do grupo, eventualmente encontrava um ou outro na praia ou num barzinho. Minha realidade agora era outra: novos amigos, nova rotina social.

Mas a amizade com o Érico continuava, pelo menos nas conversas por telefone. Ele ainda mantinha contato com quase todos os outros. E me atualizava das novidades. Também me ligava no dia do meu aniversário, no Natal, no Ano Novo. Nos últimos anos, as notícias dos amigos não eram muito boas, como essa da morte do Betinho.

Quando eu atendia suas ligações, já me antecipava em tom de brincadeira: Quem morreu dessa vez?

― Ninguém. Dessa vez não foi morte.

― Verdade?! Graças a Deus!

― Antes fosse.

E passou a me contar o que aconteceu com o Diego, o zagueirão do nosso time. Gordo, e com quase sessenta anos, sofreu um AVC e estava vivendo numa cadeira de rodas. Isso foi há cerca de dois meses, mas só agora o Érico ligou para dar a notícia. Ele tinha se mudado para um condomínio perto do aeroporto, depois que se aposentou. Comprou uma casinha de três cômodos e uma moto. Por isso o Érico não soube logo do ocorrido. Só conseguiu o endereço dele porque encontrou seu primo Dedé no supermercado. Como o Diego ainda não tinha linha telefônica, Érico sugeriu que lhe fizéssemos uma visita.

Os eventos eram sempre de natureza trágica. Nada de aniversário, ou coisa parecida. Além da visita ao Diego, cheguei a ir a um velório e ao enterro do Edgar, que, além de amigo, era meu vizinho do lado esquerdo. E a algumas visitas em hospitais também.

O tempo passou. As conversas com o Érico continuavam, mas não tão regulares como antes. E sempre com notícias ruins. Exceto, como já disse, quando ligava para me felicitar por alguma coisa. A última foi há cinco meses, no Dia dos Pais.

Dessa vez, falou-me do Evaldo, o único que não trabalhava e não jogava bola, mas nos acompanhava nas peladas e nos bares. Terminou se envolvendo com o tráfico de drogas e estava em cana na penitenciária estadual. E, para não fugir à regra, também contou detalhes da separação do João Alberto, depois que ele descobriu que sua mulher lhe traía com o Fernandinho, seu melhor amigo.

Em nossa última conversa, o Érico me ligou do seu novo celular, novidade na época. Isso porque passou o fixo para seu irmão mais novo. Depois disso, o tempo congelou nossas conversas. Érico já não me ligava há mais de um ano. Nem no Natal, nem no meu aniversário. Cheguei até a pensar que o Érico perdera o número do meu telefone, ou coisa pior.  Tenho até vergonha de que isso pareça falta de caráter, mas, de certa forma, estava aliviado por ter me livrado do Érico e dos problemas dos velhos amigos.

Certo dia, quase às onze da noite, atendi a uma chamada inesperada.

― E aí, Érico? Quanto tempo, hein? Pensei que tinha se esquecido de mim. Alô? Érico? Érico?

Insisti, mas a ligação caiu. Liguei de volta, e nada. Achei estranho, mas, como só tinha esse número, não podia falar com mais ninguém para saber o que realmente estava acontecendo.

Na manhã seguinte, enquanto ouvia o jornal das 6 na Vida Nova FM, uma notícia me chamou atenção: “Um senhor de sessenta e três anos, chamado Érico Vieira, foi vítima de latrocínio ao chegar em sua casa ontem à noite por volta das 10h45. Os assaltantes lhe deram dois tiros e levaram seu carro. Um fato curioso é que, ainda vivo, a vítima segurava um celular, como se tentasse ligar para alguém. E o número que aparecia na tela...”.

Soltei um grito: “Ai, meu Deus! Era o Érico!”.

ELOY MELÔNIO escreve às sextas-feiras para o Textual.

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